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quinta-feira, 18 abril, 2024

Da série “Se liga, ô Meirelles”: Neoliberalismo e a lorota da ‘meta de inflação’


Gerald Epstein,
Triple Crisis, entrevista a Alejandro Reuss (1/3)


Gerald Epstein é professor de economia e co-diretor fundador do Political Economy Research Institute (PERI), da Universidade de Massachusetts-Amherst. Aqui, na primeira de três partes dessa entrevista, prof. Epstein discute a obsessão chamada “meta de inflação” – obsessão com inflação muito baixa, excluindo-se todos os demais objetivos políticos, na ideologia dos bancos centrais – que se alastra pelo mundo.
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Alejandro Reuss, Triple Crisis (TC): Quando se fala de bancos centrais e política monetária, o que, precisamente, se pretende dizer com “mirar a meta de inflação”?* E em que isso difere de outros tipos de objetivos que os bancos centrais tenham?

Gerald Epstein: Manter atenção fixa na meta de inflação é abordagem nova, mas já muito disseminada, da política de bancos centrais. Significa que o banco central deve mirar uma taxa de inflação – às vezes, uma faixa, não um valor especificado, mas sempre faixa bem estreita – e esse valor ou essa faixa deve ser o único alvo de todas as políticas. Para alcançá-lo, deve usar os instrumentos que encontre – quase sempre uma taxa de juros de curto prazo; e deve evitar usar a política monetária para qualquer outro tipo de objetivo.

E quais são as outras coisas que bancos centrais já fizeram ou podem fazer, além de tentar ‘acertar’ no olho da meta de inflação? Bem, o Federal Reserve, o ‘banco central’ dos EUA, por exemplo, tem autorização para buscas duas metas (em ing., é o que se chama “dual mandate“): uma, um nível estável de preços, que é o mesmo que “meta de inflação”; a outra meta é alto emprego. Por isso se diz que é um mandato duplo (direito e dever de cumprir, de fato, não uma, mas duas “metas”).

Depois da crise financeira, há hoje um terceiro pressuposto, de que o Federal Reserve também olhará para a estabilidade financeira. Historicamente, outros bancos centrais tentaram promover exportações cuidando para manter baixa a taxa de câmbio. Alguns acusaram o governo chinês de ter feito isso, mas muitos outros países desenvolvidos também se concentraram na taxa de câmbio, para manter o câmbio desvalorizado e promover exportações. Outros países tentaram promover desenvolvimento de base ampla, apoiando políticas de estado. Quero dizer é que é possível definir diferentes tipos de metas; historicamente, os bancos centrais já se serviram de outros meios e miraram diferentes metas.

TC: Pode-se dizer que a ação de mirar a inflação sempre andou lado a lado, não só com priorizar a estabilidade de preços, acima de quaisquer outros tipos de objetivos, mas também com buscar taxas baixíssimas de inflação?

GE: Sim. Na prática, “mirar a meta de inflação” sempre significou até hoje que se busca taxa de inflação muito baixa. Por exemplo, o Banco Central Europeu definiu meta de inflação de 2%, quer dizer, tem interesse em manter a inflação abaixo de 2%. Tipicamente, todos sempre buscam inflação de um dígito.

Nos países em desenvolvimento, as metas de inflação sempre foram fixadas entre 4-8%. Significa inflação desejada sempre muito abaixo dos números da experiência histórica. Atualmente, inflação muito baixa e, de fato, a ameaça real de deflação em alguns países, já fizeram surgir as mais variadas críticas a esse tipo de abordagem que tanto se concentra em mirar a meta de inflação.

Na minha avaliação, essa obsessão com mirar uma meta de inflação é parte de o que o neoliberalismo propõe como trabalho do banco central.[1] Quero dizer, é a ideia de que a economia é inerentemente estável, que inerentemente levará ao pleno emprego e ao crescimento econômico estável em si. Sendo assim, a única coisa com que os estrategistas da macropolítica têm de se preocupar é com manter a inflação bem baixa; isso feito, todo o resto se encaixará por conta própria. Claro, e o mundo já sabe disso, toda essa abordagem neoliberal na política macroeconômica, é muito gravemente errada.

TC: Por que se tem visto a política de mirar a meta de inflação cada vez mais prevalente, nos anos recentes, nas políticas monetárias, tanto em países de renda média alta, como nos de renda média? Quais os argumentos chaves oferecidos pelos que defendem a fixação de metas de inflação? E quais podem ser as causas políticas e econômicas da prevalência das metas de inflação, mesmo que nada tenham a ver com aqueles argumentos?

GE: Pode-se dizer que é uma verdadeira revolução na política de bancos centrais. Como já disse, minha opinião é que a obsessão com mirar a meta de inflação é parte essencial de toda a tendência neoliberal que se vê ainda na política macroeconômica. Para mim, o que de mais essencial subjaz a isso tudo é a intenção de reduzir o poder dos governos e das forças sociais que possam ter algum poder de influenciar a economia política – trabalhadores, camponeses e outras forças –, para entregar o poder, basicamente, aos grupos e indivíduos que controlam os mercados.

É sempre o sistema financeiro, os bancos, sim, mas também há outras elites. A ideia dos economistas e políticos neoliberais é aquela velha história de que ninguém deseja que governos envolvam-se muito em política macroeconômica. Aí, ninguém quer estado que promova muito fortemente o emprego, porque é movimento que pode forçar aumentos de salários e, ao mesmo tempo, uma nova distribuição dos benefícios da riqueza para toda a sociedade. Ah, sim! Claro que tudo isso pode empurrar a inflação para cima, mas a inflação não é o que está verdadeiramente em jogo aqui. Problema para essa gente são governos que permitam que o banco central apoie outros tipos de políticas que darão mais poder aos trabalhadores, à força de trabalho das áreas agrícolas. Em vez desses governos, economistas e políticos neoliberais só pensam em entregar o poder político às mesmas forças que já dominam os mercados, em muitos casos, diretamente às elites que controlam a finança.

Claro que esses não são os argumentos apresentados à opinião pública pelo pessoal para os quais mirar a meta de inflação é obsessão. Eles dizem “Vejam bem, a inflação é o principal problema. Temos de manter baixa a inflação, num patamar baixo e estável, porque só assim haverá crescimento econômico”.

Obram sempre no campo conceitual neokeynesiano, até mesmo neoclássico, ao abordarem as políticas macroeconômicas, campo no qual a economia de mercado é estável por ela mesma, inerentemente estável. Sendo assim, intervenções do estado ou de governos políticos só fazem ‘quebrar’ essa pressuposta inabalável estabilidade. Nesse quadro só há uma coisa a fazer – e é a única entrada de “o que fazer”, na lista de procedimentos das políticas macroeconômicas: manter estável a taxa de inflação. Para isso, é só encarregar o banco central dessa obrigação e impedi-lo de fazer qualquer outra coisa; e a economia capitalista, perfeitamente capaz de tomar conta de si mesma, operar afinal corretamente e dará conta de todos os problemas.

Essa abordagem, me parece, contribuiu imensamente para a forte instabilidade financeira em que vivemos. Observe que, ao mirarem na meta de inflação, miram sempre na inflação no preço das mercadorias. Mas… e quanto às bolhas (imobiliária, por exemplo)? Ninguém se preocupa com reduzir a inflação no preço do patrimônio? Não. Não há registro de qualquer tentativa para reduzir a inflação nas bolhas, nem das hipotecas podres, nem, em geral, do mercado imobiliário. Também é inflação. Por que ninguém cuidou de ‘fazer mira’ contra a inflação nesses mercados?.

Claro, sabemos que a economia capitalista jamais alcança o pleno emprego por meios próprios. Assim sendo, por que não miram taxas mais altas de emprego? Na África do Sul, por exemplo, as taxas de desemprego estão entre 25-26%. E mesmo assim vivem sob regime de buscar metas de inflação bem baixas, sempre de um dígito, em vez de buscar menor desemprego. São coisas que absolutamente não fazem sentido algum.

O outro argumento sempre presente no discurso dos que pregam mira eterna a favor de inflação menor, é a conversa do fracasso dos estados. Ainda que tenham de conceder que a economia, sozinha, nunca se aperfeiçoará, nunca desistem do argumento pelo qual sempre que o Estado ou os governos se metem na economia de mercado, só fazem piorar ainda mais as coisas. Por isso, reza esse argumento, só se admite alguma mínima intervenção; sendo mínima a intervenção do Estado, pelo menos, dizem eles, o dano será pequeno. É o que mais se ouve.

Mas, como se sabe, tem havido muitas intervenções bem-sucedidas do Estado na economia, na Coreia do Sul, na China, e em vários pontos onde os governos, operando na economia com o sistema financeiro e outros atores, tiveram papel crucial no desenvolvimento econômico. Parece-me que já é hora de descartar, porque já se comprovou falacioso, o argumento do ‘fracasso do governo’.

Olivier Blanchard, que foi economista-chefe do FMI já disse que está demonstrado que vivemos numa bela ilusão, pela qual a única coisa de que precisaríamos seria uma meta, a inflação baixa; e uma taxa de juros, uma taxa de juros de curto prazo; assim, tudo estaria OK. Ora… Depois da crise já se sabe que precisamos de várias metas de inflação e que precisamos de várias ferramentas, não uma única – e além do mais, imprestável –, para alcançar nossos objetivos. (Continua)



* No orig. inflation targeting. É expressão que exige uma ‘manobra’ para ser traduzida, porque targeting é, em ing., uma forma nominalizada do verbo to target que exige sujeito ativo (lit., no plano semântico, em português, equivale a alguma coisa como ‘miração’ [na inflação]).

A tradução corrente em português do Brasil, construída pela mídia-empresa golpista naturalizou a forma “meta de inflação”, como se se referisse a um conceito científico ‘isento’, do qual foram varridos todos os traços verbais ativos, de tal modo que “meta de inflação” já praticamente significa, hoje, um fato da natureza, não mais, como efetivamente é, um instrumento criado e operado por economistas, por vias pressupostas ‘científicas’, para determinados objetivos que, muito mais que ‘científicos’, são políticos e de classe.

A forma que propomos – “mirar a meta de inflação” –, tenta resgatar (i) os traços verbais ativos que há na forma original, em inglês; e (ii) a noção de que há aí necessariamente um sujeito ativo que ‘faz mira’ contra (supostamente) a inflação, ou, melhor dizendo, um sujeito ativo que só pensa em matar a inflação a qualquer preço e a qualquer custo, sem qualquer atenção aos custos sociais da ‘operação’. É tradução tentativa, como sempre; outras formas são possíveis. Correções e comentários são bem-vindos [NTs].

[1] Sobre bancos centrais, ver, interessante “Geopolítica do sistema de Banco Central”, 17/3/2016, Valérie Bugault, Katehon, traduzido em Blog do Alok [NTs].

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