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quinta-feira, 28 março, 2024

A luta pelo espólio da democracia partidária

Autor: Tiago Eloy Zaidan

No dia 16 de março de 2016, o blogueiro Rodrigo Constantino, o qual ganhou notoriedade como colunista da revista Veja, divulgou uma lista  com nomes de artistas, intelectuais e jornalistas. A conclamação era para que os relacionados fossem boicotados e fustigados por serem o que chamou de “petralhas”.

Precedendo a lista, o blogueiro explicou que, para os integrantes de sua Index, “O desprezo público também é muito bem-vindo, como vaias, olhares hostis e até xingamentos. […]”. E continuou: “Eles precisam sentir que não terão sossego, não terão paz enquanto usarem sua fama e seus canais para fomentar um verdadeiro golpe comunista”.

No dia seguinte, a lista  foi atualizada e novos nomes foram incluídos de modo a não apenas abarcar os “declarados” como os “enrustidos”.

A referida lista somou-se aos casos de agressões sofridas por pessoas as quais trajavam camisa da cor vermelha. Ocorrências do gênero têm sido observadas desde os anos anteriores. Algumas destas agressões foram registradas em vídeos os quais se encontram disponíveis em plataformas como o Youtube .

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No período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, uma Alemanha combalida ainda recolhia os despojos de um prélio perdido. Caracterizava-se por ser um país em crise (situação acentuada após a quebra da bolsa de 1929), por possuir um frágil e pressionado governo democrático (a república de Weimar) e por assistir à ascensão de um carismático líder de extrema-direita, tido como salvador da pátria.

O fato muito preocupava a Leon Trotski (1879 – 1940). Trotski, na ocasião, encontrava-se na condição de exilado, fruto da perseguição engendrada por Joseph Stálin (1878 – 1953), a esta altura, senhor absoluto da União Soviética. Ainda assim, tentou alertar a esquerda alemã para o perigo que o crescimento da extrema-direita representava.

O bloco conservador alemão não era homogêneo. Segundo esclarece a obra Enciclopédia de Guerras e Revoluções: 1919 – 1945 – a época dos fascismos, das ditaduras e da segunda guerra mundial , organizada pelos professores Francisco Carlos da Silva, Alexander Vianna (ambos UFRJ) e Sabrina Medeiros (Escola de Guerra Naval), “[…] grupos rivais disputavam a hegemonia e o controle da hierarquia interna, particularmente a partir de 1930, quando o partido começou verdadeiramente crescer. Uma ala era particularmente ativa: os SA (‘Sturmabteilung’, ou ‘Divisões Tempestade’), tropas de choque que desfilavam fardadas portando insígnias pelas ruas e promoviam atos de vandalismo e terror contra judeus, comunistas e locais gays”.

No entanto, alimentada por uma suspeição com relação aos sociais democratas, os quais haviam abandonado suas antigas bandeiras de luta e se mostravam dispostos a coalizões amplas a fim de garantir a manutenção da República de Weimar, a esquerda alemã assistiu relativamente impassível à ascensão do nazismo.

A composição de um bloco antinazista poderia ter fortalecido a luta contra o crescimento da extrema-direita. O fato de Trotsky ter defendido tal posição não fez dele um militante alinhado às fileiras da social democracia. Ao contrário, o posicionamento do revolucionário ucraniano revelou a antevisão política do homem o qual viria a ser assassinado no México em 1940.

Desgastados, os sociais democratas perderam espaço para a extrema-direita embalada por Adolf Hitler (1889 – 1945) e por seu séquito. Empresários, simpatizantes e receosos com um eventual crescimento dos comunistas, deram suporte ao partido nazista.

Depois disso, não demorou e a esquerda foi dizimada, inaugurando os campos de concentração nazistas. Sob a égide hitlerista, o Estado, agora assumindo a alcunha de III Reich, “[…] já não serve para garantir o direito à liberdade de pensamento, mas para impor, de modo violento, a forma dominante do que é possível pensar”, esclarecem Nilton Pereira (UFRGS) e Ilton Gitz (Colégio Israelita Brasileiro) na obra Ensinando sobre o Holocausto na escola . Para o nazismo, “todo pluralismo já é considerado degenerante; todo o conflito de ideias – base sobre a qual se assenta o governo democrático – já não é outra coisa que não produtor da discórdia que leva as nações à decadência”, completam Pereira e Gitz.

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No Brasil de 2016, para muitos progressistas, o Partido dos Trabalhadores já não representa qualquer possibilidade de avanço no campo das esquerdas. De fato, por motivos diversos, os quais, por si só, já mereceriam outro debate, os avanços obtidos pela era PT possuem limitações. Destacaria a universalização do ensino superior, abrangendo, inclusive, a expansão da Rede Federal para o interior do Brasil, a qual, a médio e longo prazo pode apresentar resultados surpreendentes, com a formação de intelectuais orgânicos a outras classes sociais, que não apenas à classe média, tradicional ocupante das vagas nas universidades públicas.

Em todo caso, a despeito das divergências com relação ao nível da fidelidade do PT ao ideário da esquerda, o fato é que o partido de Lula e Dilma tem sido duramente fustigado pelos setores mais conservadores da política nacional.

As manifestações pró-impedimento têm arrebatado multidões, posto que as marchas convocadas pelo Movimento Brasil Livre (MBL) têm conseguido reunir os diversos segmentos da direita. O bloco o qual marcha nas manifestações de oposição ao governo não é, portanto, homogêneo, apesar da imagem liberal da entidade organizadora, o MBL, que tenta capitalizar a liderança do bloco conservador.

A bem da verdade, além de manifestantes dotados, conscientemente, de interesses de classe, ou propugnadores de uma postura liberal para o Estado brasileiro, há uma miríade de outros públicos, tais como: uma crescente e agressiva parcela de extremistas de direita e, provavelmente em maior número, cidadãos insatisfeitos com a crise política e econômica. Estes últimos têm suas revoltas canalizadas para a manifestação, encorpando o ato do MBL, embora não sejam liberais e, quiçá, saibam do que se trata o liberalismo. Estes estariam melhor alocados em uma passeata em defesa de uma reforma política profunda.

Por fim, mas não em parcela menos significativa, compõem o bloco um sem número de manifestantes os quais estão meramente a reboque, “guinchados” por clichês e pelo efeito de espiral gerado pelos meios de comunicação de massa, conforme teorizado pela alemã Elisabeth Noelle-Neumann (1916 – 2010).

Ao fim e ao cabo, a despeito dos cartazes que bem poderiam ter sido ressuscitados das manifestações pré-1964, dificilmente a parcela majoritária dos presentes nas manifestações do MBL possuem discernimento sobre o que é ser “liberal”, ou mesmo “comunista”, visto que estes não são temas sobre os quais se aprende em telejornais ou em revistas semanais.

Aliás, há de se frisar que, no atual contexto do que já se pode vislumbrar como um Estado de exceção, imagino o que diriam os clássicos do liberalismo a respeito do evidente desrespeito a direitos fundamentais no bojo das investigações em curso contra o ex-presidente Lula.

Adam Smith (1723 – 1790), John Locke (1632 – 1704) e Voltaire (1694 – 1778) não aprovariam violações aos direitos civis por agentes do Estado. O fato de os liberais brasileiros comemorarem cada arroubo de Sérgio Moro não é um paradoxo. É a constatação de que os liberais brasileiros não leram os clássicos do liberalismo. Provavelmente, se contentaram com a mediação de alguma revista semanal, ou com as releituras de sociólogos de ocasião da TV. Ou, antes, é a constatação de que os pretensos liberais locais são, na realidade, emblemas representativos de um capitalismo peculiar, tardio e anacrônico.

Em A revolução Burguesa no Brasil, Florestan Fernandes  (1920 – 1995) expõe a tese de que o capitalismo dependente das nações capitalistas subdesenvolvidas é abstruso e de viabilidade fortemente influenciada por meios políticos, em terrenos que não os econômicos. Difere do capitalismo dos países da Europa Ocidental, pelo fato de não ter nascido de uma ruptura, a revolução burguesa, e sim de uma modernização conservadora que apenas reacomodou velhos protagonistas. O resultado é uma burguesia não despojada das quinquilharias da nobreza feudal ou da elite escravocrata, marcada pelo respeito a títulos nobiliárquicos hereditários e seus congêneres contemporâneos.

Isso explica em parte a dificuldade cultural da burguesia brasileira em lidar com qualquer tipo de universalização, mesmo que ela se dê de modo consonante com a reprodução do próprio capitalismo: a universalização do consumo, por exemplo. O que dizer então da universalização do ensino superior, um bastião secular de classes sociais específicas?

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Os casos de corrupção envolvendo setores ligados ao governo, amplamente ventilados pela mídia, servem de combustível para a mobilização dos manifestantes nos atos articulados pelo MBL. No entanto, com a revelação da extensão dos escândalos, a qual já alcança nomes importantes nos círculos da oposição, como Aécio Neves (PSDB), a insatisfação popular tende a se generalizar.

Apesar da sofrível e seletiva cobertura das emissoras de TV, mídia basal no Brasil, as notícias do envolvimento de defensores do impeachment nos mesmos escândalos em que se meteram governistas e aliados têm aparecido nos jornais impressos e contam com a ajuda das redes sociais para se espalharem. De fato, as redes sociais são um elemento novo na equação se relativizarmos com 1964.

Há a possibilidade de que partidos de matizes diversos saiam duramente maculados da crise política, o que trará conseqüências sérias para a democracia partidária. Caso isso ocorra, a esquerda deve estar a postos para ocupar espaços, com vistas a, posteriormente, ter condições de disputar o espólio da democracia pós-crise política generalizada.

Neste contexto, não se pode negar a movimentação da extrema direita, beneficiada não apenas pelo fato de as origens das manifestações pró-impeachment serem, evidentemente, conservadoras. Jair Bolsonaro (PSC) e seu cortejo têm sido competentes em ocupar espaços, tal como foram os extremistas de direita na Alemanha entre guerras, em um contexto de desconfiança paralisante das esquerdas.

Mesmo não representando exatamente a personificação do homem liberal, Bolsonaro tem se projetado profusamente nas manifestações pretensamente liberais.

Do outro lado, alguns setores da esquerda têm se recusado a participar das manifestações contra o impeachment, motivados por objeções ao PT – embora a esta legenda seja atribuída a pecha de agremiação comunista pelos opositores mais radicais.

Ao passo em que não participam das manifestações articuladas pela chamada Frente Brasil Popular, tais setores da esquerda também não têm sido capazes de articular uma marcha alternativa.

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A queda do PT, stricto sensu, não é o problema.

O problema é que o tsunami conservador, o qual tem angariado simpatizantes na sociedade, não vai parar no PT. O PT não passa da cadeira de praia que está mais próxima da onda. Por isso, pode acabar engolido primeiro.

Toda a estrutura montada para as manifestações conservadoras não será fruída apenas para sepultar o PT. É subjacente a ideia de varrer o ideário político de esquerda como um todo. Tornar o discurso de esquerda um tabu. Algo digno de merecer linchamento. Ou vaias, xingamentos e olhares hostis, como defende Rodrigo Constantino.

Tal qual na Alemanha nazista, pós-social democracia, também no Brasil, a ascensão da extrema-direita tornará mais distante a viabilidade de uma alternativa de esquerda.

No mais, tomar parte nas manifestações da chamada Frente Brasil Popular – ainda que os partidos não o façam de forma institucional – é uma maneira de se posicionar contra o hábito da direita brasileira de subverter a regra do jogo político do próprio Estado burguês, quando este não atende aos seus interesses imediatamente diretos. O solapamento do Estado tem sido um remédio utilizado desde longa data pelos setores conservadores. Destituída a presidenta, a consideração do uso do expurgo como alternativa a derrotas eleitorais certamente continuará no repertório da direita. Especialmente se considerarmos um posterior governo efetivamente progressista.

Por isso, de certa forma, quanto mais difícil for a concretização do impeachment, maior terá sido a trincheira conquistada na melindrosa batalha de posições. E menos tentador tornar-se-á o uso do mencionado remédio para a manutenção do establishment da próxima vez.

Por ora, até já é possível vislumbrar um conquista se levarmos em conta os indícios de amadurecimento da sociedade civil, a qual tem demonstrado, ao menos em parte, resistência ante o endurecimento do discurso conservador, apesar da falta de unidade das esquerdas e do evidente desequilíbrio pelo qual labuta a grande mídia.

A propósito, é sintomático que o detentor de um discurso com o nível de extremismo de Rodrigo Constantino tenha abocanhado espaços em veículos de comunicação de massa, como O Globo – em que pese a tradição conservadora das organizações da família Marinho. O blogueiro lança mão de artifícios de regimes totalitários para, supostamente, defender a democracia.

Nesse sentido, ao colocar em perspectiva a ascensão do nazismo, relativizando-a com o cenário político contemporâneo, Eric Weitz, chefe do departamento de História da Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, comenta em entrevista concedida à alemã Deutsche Welle (DW): “É claro que os nazistas nunca estiveram comprometidos com a democracia, mas usavam a retórica populista que encontrava ressonância nas pessoas. Quando esse tipo de retórica mascara práticas não democráticas, então é a hora de nos preocuparmos. A analogia que realmente me preocupa é quando conservadores do establishment fazem com que conservadores radicais se tornem ‘aceitáveis pela sociedade’”

Referências (publicação opcional)

[1] http://rodrigoconstantino.com/artigos/lista-sugerida-para-boicote-artistas-intelectuais-e-jornalistas-petralhas/. Acesso em 19 de mar. 2016.

[1] http://rodrigoconstantino.com/artigos/lista-completa-dos-petralhas-cumplices-dos-golpistas/. Acesso em 19 de mar de 2016.

[1] https://www.youtube.com/watch?v=OjzVfUqkGBY. Acesso em 17 de março de 2016. https://www.youtube.com/watch?v=8GRhk0ofUGE. Acessado em 17 de março de 2016.

[1] SILVA, Francisco Carlos da; VIANNA, Alexander; MEDEIROS, Sabrina. Enciclopédia de Guerras e Revoluções: 1919 – 1945 – a época dos fascismos, das ditaduras e da segunda guerra mundial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.

[1] PEREIRA, Nilton; GITZ, Ilton. Ensinando sobre o Holocausto na escola: informações e propostas para professores dos ensinos fundamental e médio. Porto Alegre: Penso, 2014.

[1] FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de janeiro: Zahar editores, 1975.

[1] PHALNIKAR, Sonia. Ascensão de Hitler, há 75 anos, marcou fim da República de Weimar. Deutsche Welle (DW), Bonn (Alemanha), 29 de jan. 2008. Disponível em: http://www.dw.com/pt/ascens%C3%A3o-de-hitler-h%C3%A1-75-anos-marcou-fim-da-rep%C3%BAblica-de-weimar/a-3095383. Acesso em 20 de mar. 2016.

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