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quinta-feira, 2 maio, 2024

A utopia de Aleksandr Bogdánov: um antídoto a nosso tempo – Prefácio de Estrela vermelha

por Paula Vaz de Almeida e Ekaterina Vólkova Américo [*]

            – Esta é a cor da nossa bandeira socialista – eu disse.– Então, devo me acostumar com a natureza socialista de vocês. [1]Aleksander Bogdánov, Estrela vermelha

Capa de 'Estrela vermelha'.

Chegamos a um ponto da história humana, neste século que já caminha para a terceira década, em que as utopias parecem ter perdido seu lugar. Basta ver o número de criações artísticas que versam sobre nosso fim: são livros, filmes, séries televisivas, peças de teatro etc. que ganharam fama em um gênero denominado “distopia” (ou “antiutopia”). É possível que um suposto marciano, se olhasse hoje a Terra, perguntasse o que os terráqueos estão querendo dizer de si próprios com tal produção cultural. Parece que passamos a acreditar mais na extinção de nossa espécie que na transformação radical da organização da vida na Terra; ou, ainda, no abandono de nosso mundo, como sugerem projetos de escapismo extraterreno de colonização de outros planetas, especialmente Marte. A facilidade – e, por vezes, até o entusiasmo – com que se aceitam as narrativas de fim do mundo é diretamente proporcional ao ceticismo com que se rejeitam as ideias de um mundo igualitário e justo.

No momento em que escrevemos este prefácio, nosso planeta passa por uma pandemia cujo número de vítimas já atinge a casa dos milhares, além de uma crise orgânica que se aprofunda gradativamente. O individualismo já radical de nosso tempo tem se radicalizado ainda mais, favorecendo fobias, aguçando ansiedades, conduzindo ao isolamento social coercitivo e voluntário; mas há também exemplos de solidariedade, auto-organização e gritos de esperança nas janelas, como aquela flor desbotada que rompe o asfalto. Enquanto algumas trombetas soam o apocalipse e cenas distópicas surgem como interferências na realidade prática imediata, os mais preocupados com suas perdas financeiras não sentem constrangimento ao afirmar que a pandemia pode representar um benefício em longo prazo, pois livrará o mundo de pessoas supérfluas, em especial, pobres, fracos e idosos; tampouco se constrangem ao anunciar medidas que consistem, simplesmente, em deixar morrer os de idade mais avançada. De repente, surge um debate em que se opõe a economia à vida humana, como se uma pudesse existir sem a outra, e como se, por “economia”, os parasitas de nosso tempo não quisessem dizer a proteção dos próprios lucros, de seu acúmulo de capital.

É evidente que se o capitalismo continuar nessa toada, os cenários, os estados e os saldos de guerra serão cada vez mais cotidianos, até se tornarem a norma. Também é verdade que, tal como são usadas hoje, as tecnologias digitais podem representar uma forma de controle em massa, com efeitos nefastos. E, de fato, enquanto a humanidade estiver sujeita à irracionalidade do lucro, à lógica de uma minoria que expropria até os sonhos dos demais, não faltarão motivações para ela imaginar e representar o próprio fim, já que é a isso que o modus operandi do capitalismo conduz. Hoje, o rio de aço do tráfego, os bondes, os ônibus e mesmo os negócios à revelia ameaçam paralisar-se. O temor da burguesia de que na rua nasça uma flor, nutrida pelas revoltas e pelos exemplos de auto-organização em rede surgidos em todas as partes do planeta, estampa-se nos jornais. Assim, se há razões para pensar no triunfo da barbárie sobre a face da Terra, também há diversos motivos para acreditar (e lutar) por uma saída coletiva.

Por tudo isso, dizemos que Estrela vermelha é um antídoto a nosso tempo, uma época de crises, guerras e revoluções; na leitura deste romance, vemos emergir outro mundo possível.

Em sua utopia, Bogdánov nos conduz em viagem pelo universo infinito até aterrissarmos em Marte, onde não há Estado, a organização socioeconômica é baseada na propriedade coletiva dos meios de produção, as decisões são tomadas por conselhos deliberativos no formato de assembleias e as relações humanas se desenvolvem de maneira distinta da nossa. A jornada no planeta vermelho é contada pelo narrador e personagem principal, um revolucionário russo já experimentado quando se passa a ação, provavelmente a segunda década do século XX. Leonid, seu nome terráqueo, ou Lenny, a alcunha marciana, é um intelectual social-democrata que escreve a seus camaradas um informe detalhado da tarefa intergaláctica para a qual havia sido selecionado: servir de elo entre dois mundos, entre duas humanidades. O interessante documento vem à luz por meio de dr. Werner, médico psiquiatra a quem o protagonista havia confiado seu manuscrito.

Há quem diga que o romance de Bogdánov é a última utopia da literatura russa. Antes dele, há Viagem para a Terra de Ofir (1783) [2] , alguns capítulos de Viagem de Petersburgo a Moscou (1790), de Aleksandr Rassíschev, em que a visão utópica está diretamente relacionada à abolição da servidão, prometida, porém não cumprida, pela imperatriz Catarina II [3] , e 4338 , romance fantástico que o príncipe Vladímir Odóievski começou a publicar em fragmentos em 1835 [4] . Depois dele, diz-se que se instaurou o reino da distopia. Para citar apenas alguns títulos: Nós, de Evguiéni Zamiátin, escrito de 1921 a 1922 e publicado pela primeira vez em 1924, Ovos fatais e Um coração de cachorro, ambos de Mikhail Bulgákov, o primeiro de 1924 e o segundo de 1925, alguns romances de Andrei Platónov, Moscou-Petuchki (1973), de Venedikt Erofiéev, e, um exemplo mais recente, Kys, de Tatiana Tolstáia, que retrata uma Moscou pós-apocalíptica.

Bogdánov escreve seu Estrela vermelha no início do século XX, e a primeira edição, a qual usamos de base para a tradução [5] , saiu em 1908. A virada do século XIX para o século XX na Rússia se deu acompanhada de muitas transformações. Com a morte de Alexandre III, ascende ao trono Nicolau II e, naquele momento, havia uma classe social urbana emergente, criada pelo processo de modernização e industrialização do período anterior: o proletariado, submetido a desumanas condições de trabalho. Outro efeito desse processo foi a renovação cultural por que passou o país, com o movimento simbolista trazendo de volta a poesia ao centro da cena literária. Seria esta mesma poesia a explodir de vez, ainda na primeira década do século seguinte, com as famosas vanguardas russas. Não são obra do acaso as descrições futuristas e o culto à máquina e ao futuro que aparecem ao longo de toda a narrativa de Bogdánov, bem como as críticas indiretas à arte moderna feitas pelo narrador, por exemplo, em sua visita ao museu de arte marciano. Devido, em parte, a esse novo estado de coisas e, em parte, à radicalização do movimento narodnista (ou populista, como também é conhecido) [6] – que acaba por consumir quase toda a atenção da polícia repressiva do regime –, as ideias socialistas e, em especial, as marxistas começam a se difundir com relativa liberdade entre a intelligentsia e os trabalhadores do Império Russo. Seriam justamente essas ideias a ponta de lança das revoltas de 1905 e, posteriormente, das revoluções de 1917.

A trama de Estrela vermelha suscita diversas comparações tanto com a vida do próprio autor quanto com o momento que vivia o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) naquela virada de século: a companheira terráquea de Leonid, Anna Nikoláievna, pertencia à ala moderada do partido, e o rompimento do casal, que acontece já nas primeiras páginas do romance, embora consequência direta da inusitada tarefa de Leonid, expressa uma divergência política mais profunda. Em 1903, durante o II Congresso do POSDR (Bruxelas-Londres), ocorre a cisão do partido entre bolcheviques e mencheviques, e Bogdánov – assim como acontecera na ficção ao protagonista do romance – toma naquele momento o lado de Vladímir Lênin.

A história das relações entre os dois revolucionários é tão interessante e tortuosa quanto é exemplar dos debates no interior do movimento revolucionário russo daquele período. O autor de Estrela vermelha era um “velho marxista”. No início de sua atuação política, Bogdánov ligara-se ao Naródnaia Vólia – motivo pelo qual é expulso da Universidade de Moscou em 1884. Como era comum a jovens radicais da intelligentsia russa e ao movimento dos naródniki, aproximou-se das ideias marxistas e ingressou nos círculos operários, nos quais dedicava-se ao ensino de economia política. Como resultado desse trabalho, publicou, em 1897, seu Breve curso de ciência econômica, em que explica de modo simples e compreensível os principais conceitos da economia política. Sua didática era conhecida e foi ironizada, a ponto de a expressão “explicou como Bogdánov”, em tom de elogio ou de crítica, entrar para o léxico russo daquele tempo.

Bogdanov, Lénine e Gorki.

Do POSDR, Bogdánov participou desde a fundação; foi vice-líder da fração bolchevique, construindo e dirigindo o partido, de cujo Comitê Central fez parte, ao lado de Lênin. Durante a Revolução de 1905, foi o dirigente bolchevique junto ao Soviete de São Petersburgo. Apenas em 1909 romperia com o partido e com Lênin, que criticava seu “idealismo filosófico”. As divergências, todavia, teriam se iniciado ainda em 1906, quando Bogdánov publicara sua obra filosófica fundamental Empiriomonismo, duramente criticada por Lênin e Plekhánov sob a acusação de revisionismo e idealismo subjetivo – ainda que a razão central da ruptura tenha sido quanto à estratégia e às táticas revolucionárias. Dois anos mais tarde, em 1908, durante uma visita a Maksim Górki em Capri, Lênin e Bogdánov se encontraram: entre partidas de xadrez e conversas amenas, em contraste com o clima amigável registrado pela máquina fotográfica de Iúri Jeliábujski [7] , travaram-se debates que contribuíram para o rompimento entre os dois. Nessa época, Bogdánov encontrava-se em exílio – havia sido expulso da Rússia por atividades subversivas –, retornando apenas em 1914, beneficiado pela anistia do tsar, que visava reunir combatentes para a Primeira Guerra Mundial. Nesse momento, ele atuou no front, como médico. Qualquer semelhança com o dr. Werner, amigo, psiquiatra e confidente de Leonid, como poderá conferir o leitor, não é, evidentemente, mera coincidência.

 

De volta ao país natal, Bogdánov pôde assistir aos acontecimentos de 1917, os quais, pedimos licença para adiantar, também previu em seu romance. Depois da vitória bolchevique, foi um dos idealizadores e ideólogos do movimento literário Proletkult, que se baseava na definição de “cultura proletária” (” proletárskaia kultura “, em russo, expressão da qual deriva o acrônimo) formulada por Anatóli Lunatchárski, velho conhecido dos tempos de POSDR e futuro Comissário do Povo da Educação da Federação Russa. Os dois se tornaram amigos ainda em 1899, quando nosso autor mantinha em Kaluga um círculo de exilados políticos. Entre 1918 e 1921, lecionou economia política na Universidade de Moscou e foi membro da direção da Academia Comunista. Em 1923, foi preso sob a acusação de participar do grupo em torno do Rabótchaia Pravda [Verdade Trabalhista] – naquele momento a ala esquerda do partido, que inclusive promovia greves –, mas logo foi solto. Anos mais tarde, organizou e presidiu o primeiro instituto de transfusão de sangue do mundo, em 1926: uma experiência que objetivava prolongar a vida por meio da transfusão do sangue de indivíduos mais jovens. Esta era a principal obsessão do escritor, e foi uma autotransfusão de sangue malsucedida a causa de sua morte.

Assim como na realidade, também na ficção, como é comum aos escritores, Bogdánov usava a si mesmo como objeto de seus experimentos científicos. O leitor poderá encontrar diversos episódios marcantes de sua biografia nas páginas de sua obra. Talvez o mais exemplar seja o encontro, no limiar dos séculos, com o filósofo político e religioso Nikolai Berdiáev, que se tornaria famoso e cuja narração em Autoconhecimento: ensaio de uma autobiografia filosófica coincide de maneira quase literal com a descrição das relações entre Leonid, recém-chegado de Marte, e o dr. Werner, já na parte final do romance.

Curiosas eram minhas relações com A. Bogdánov. […] Bogdánov era uma pessoa muito boa, muito sincera e fielmente devota à ideia. Naquela época, eu já era considerado um “idealista”, imbuído de buscas metafísicas. Para A. Bogdánov, isso era um fenômeno completamente anormal. Originalmente, ele se especializou em psiquiatria. No início, costumava me visitar. Percebi que me fazia sistematicamente perguntas estranhas: como havia me sentido pela manhã, como estava o sono, qual seria minha reação a isso ou aquilo e coisas do gênero. Acontece que ele considerava a propensão ao idealismo e à metafísica um sinal de um transtorno mental inicial e queria determinar o quão longe isso teria ido no meu caso. [8]

Berdiáev e Bogdánov representavam, respectivamente, duas correntes filosófico-político-religiosas que marcaram a vida intelectual russa no limiar dos séculos: bogoiskátelsto (a busca de Deus) e bogostroítelstvo (a construção de Deus). Inicialmente muito próximas, ambas tratavam de questões existenciais semelhantes àquelas levantadas pela literatura russa clássica, principalmente nas obras de Lev Tolstói e Fiódor Dostoiévski. Entre os problemas discutidos, destacava-se a possibilidade de aproximar o marxismo e a religião. A primeira corrente se afastava cada vez mais do marxismo em direção à religião, enquanto a segunda, da qual faziam parte, entre outros, Bogdánov, Lunatchárski e Górki, buscava o divino no esforço coletivo, uma espécie de religião sem Deus. Evidentemente, o elemento religioso, que na falta de Deus ameaça sacralizar o próprio homem, foi duramente criticado por marxistas menos ecléticos como Plekhánov e Lênin; do mesmo modo, não é à toa que Górki tenha se tornado ideólogo do realismo socialista instituído por Ióssif Stálin, em uma era na qual, por meio de uma série de deturpações, a deificação do líder político ganhou forma e encarnou na realidade.

A abordagem de temas em Estrela vermelha é tão ampla e multifacetada quanto a formação e a atuação de seu autor. Dele, pode-se dizer que não foi propriamente um escritor de literatura. Foi, antes, um publicista, à moda de Tchernychévski. Seu fazer literário não primava pelo elemento estético-artístico, mas privilegiava o procedimento segundo o qual o autor, valendo-se dos recursos característicos da prosa de ficção, especialmente o romance, gênero popularizado no século XIX, visa propagar um ideal político-ideológico.

A multiplicidade feérica de interesses e ocupações de Bogdánov impressiona: como vimos, foi revolucionário e um dos fundadores do POSDR, além de político, cientista, pesquisador, psiquiatra, filósofo, médico de combate – áreas e experiências tomadas de empréstimo a serviço da obra pelo escritor. É como se o engenheiro da trama, dono da imaginação de um inventor, submetesse a pena do escritor de ficção e a tribuna do político ao rigor metodológico do cientista. Afirmar, dessa maneira, que Aleksandr Bogdánov “não foi propriamente um escritor de literatura” não significa que ele tenha sido um “escritor menor”. Com efeito, pretendemos jogar luz, por um lado, na tradição a que se filiava nosso surpreendente autor, e, por outro, na maneira por meio da qual ele mobiliza, na tessitura do romance e na composição das personagens, o arsenal das ferramentas que sua formação polivalente e a riqueza de sua atuação, em especial como intelectual revolucionário, permitiu-lhe reunir.

São muitas as passagens em que emerge o filósofo, outras tantas em que sobressai o psiquiatra e o cientista social. Como um investigador da vida humana em sentido amplo, o autor empresta a própria psique, a interioridade (ou, se quisermos, a alma, o espírito), além da experiência e do conhecimento acumulados, às suas personagens, a fim de investigá-las, dissecá-las, encontrar os elementos que engendram, naquilo que temos de mais primordial e comum, cada uma das humanidades representadas – já não mais a da Terra e a de Marte, mas os seres humanos vivendo nos distintos sistemas: o capitalista e o socialista. Nesse ponto, parece exemplar um trecho sobre a transfusão de sangue na medicina tal como praticada em Marte, a qual, em última instância, representa uma transfusão interestelar, interplanetária, entre as humanidades.

– […]. A transfusão de sangue praticada na medicina de vocês – agora, muito raramente – possui um certo caráter filantrópico: aquele que tem muito dá a outro que tem uma necessidade aguda, em decorrência de, por exemplo, o sangramento grande de uma ferida. Isso também acontece aqui, é claro; mas sempre praticamos algo diferente, aquilo que corresponde a toda nossa organização: uma troca de vida camarada não só na existência ideológica, mas também fisiológica [9]

A todo momento o narrador deste inusitado romance (até agora, inédito em língua portuguesa) nos faz imaginar outro mundo possível. Seus conhecimentos de física e matemática, bem como das áreas de astronomia, geologia, biologia e geografia são ferramentas fundamentais para a construção e a manutenção da verossimilhança na obra. Há uma explicação científica para cada coisa: por que os marcianos têm olhos enormes; por que as plantas em Marte são vermelhas e na Terra elas são verdes; por que e como as eteronaves podem voar pelo espaço infinito. No romance, vemos descritos com rigor não apenas os achados da época, como o da matéria radioativa por Marie Curie, mas outras tantas invenções com as quais a ciência, quando muito, ainda sonhava, como viagens espaciais, motores à reação, uso da energia nuclear, televisões estereoscópicas, computadores, automatização da produção, tecidos sintéticos e transfusões de sangue.

É interessante notar que, na narrativa, esses elementos cumprem a função de nexo entre os fatos representados, por mais fantásticos ou imaginativos que possam parecer, e asseguram a harmonia geral, a coerência interna da obra. Estrela vermelha é, assim, além de uma utopia, um romance de ficção científica. Ocorre que, nesta obra, o autor projeta o futuro por meio de um método científico, ou seja, do materialismo dialético baseado na destruição das antigas relações humanas para a construção de uma nova, já não de maneira idealizada, mas com base em fatores concretos, apontando não só para uma sociedade possível, mas precisamente para aquela pela qual lutam os comunistas, conforme preconizado por Karl Marx e Friedrich Engels.

O aspecto didático e de fácil compreensão com que o autor expõe os temas científicos aparece também na representação do socialismo em Marte, em sua organização econômica e social, na distribuição da força de trabalho, na divisão da produção, além de em como se dão os relacionamentos erótico-amorosos e de amizade, pautados no sentimento de camaradagem naquela humanidade – a qual, pela mesma razão que para Leonid, nos é tão estranha quanto próxima – e nesta Terra capitalista, em dois momentos distintos: no da escrita do romance, ou seja, apenas três anos após os eventos de 1905, e num futuro próximo, em que na Rússia triunfaria a revolução socialista.

É interessante também o fato de que Estrela vermelha, um romance de ficção científica utópico e uma peça de publicística de cunho político-ideológico, como ora observamos, contenha duas cartas – que servem de prólogo e epílogo a um informe político –, gênero textual não literário e de circulação interna nos partidos. É a marca do militante na própria estrutura do romance, que é ainda um panfleto comunista, um manifesto e um guia.

O modo de representação do real escolhido por Bogdánov configura um rompimento com a utopia tradicional: se, nesta última, o recurso mais amplamente utilizado é o método descritivo e as sociedades são representadas de maneira estática, muitas vezes isoladas no tempo-espaço, em Estrela vermelha, tanto o planeta Marte de Lenny quanto a Terra de Leonid são representados de maneira dinâmica, com bastantes trechos descritivos, mas também com narração e diálogos, solilóquios e até mesmo fluxos de consciência à personagens de Dostoiévski – doentios, febris e, no limite, reveladores das contradições humanas, mas capazes de apontar um caminho para sua superação, já não religioso, como o daquele autor, mas por meio da autoconsciência de sua condição.

Há outra inovação promovida por Aleksandr Bogdánov no que se refere a exploração e renovação do gênero da utopia, que, tradicionalmente, possui um caráter filosófico, quase desprovido de ação. Em vez disso, o autor insere traços romanescos, como peripécias, aventuras, reviravoltas, entrechos amorosos etc., característicos do realismo e do naturalismo do século anterior, enquanto se apropria das descobertas de outro gênero, o da ficção científica, incremento trazido pelos avanços tecnológicos e pela industrialização. O surgimento da distopia como gênero também data do mesmo período e igualmente promove uma apropriação da ficção científica e do método realista de narração. A diferença está nos mundos para os quais cada gênero aponta: enquanto utopias como Estrela vermelha propõem uma saída positiva e otimista para a humanidade – Marte é o espelho de uma possível sociedade terrena futura no momento em que a Terra realiza sua revolução social –, as distopias projetam saídas céticas e pessimistas, seja do futuro terreno, seja do contato com seres interplanetários, como se só pudéssemos conceber um terrível fim, pela via da autodestruição, e o capitalismo fosse a única forma de nos organizarmos.

Nascido no início do século XX, o gênero da distopia se desenvolveu tendo como pano de fundo duas guerras mundiais e diversas revoluções; ganhou fama nos anos 1990, quando também vinham à baila ideias que anunciavam o fim da história e das utopias, e popularizou-se de vez em nossa época. Também o mundo no alvorecer do século passado parecia colapsar, os acontecimentos testavam o otimismo dos mais convictos e o momento disruptivo produzia pessimismos absolutos. Tanto então quanto agora, o presente se ergue feito monstro, disposto a condenar o otimista do futuro ao mais inócuo nirvana civil. Bogdánov foge dessa lógica ao apontar uma saída positiva, fazendo de sua utopia uma antidistopia.

O mundo de Estrela vermelha não é um simples esforço imaginativo de como nossa sociedade poderia ser outra, diferente, mais justa e igualitária, distinta desta que sacrifica milhares de vidas humanas em nome do lucro de poucos seres viventes. Não há no livro uma idealização romântica do comunismo, um mundo sonhado, estável, imutável e, portanto, impossível. A utopia marciana, por mais irônico que possa parecer, demonstra que a superação do modo de produção capitalista será possível apenas se não nos guiarmos por fantasias. A representação do planeta vermelho empreendida no romance se dá por meio da análise científica de sua gênese, ou seja, quando e como se deu o desenvolvimento do capitalismo em Marte, bem como sua superação por meio da revolução social (a questão de ser socialista ou comunista essa sociedade, em nossa opinião, não está colocada e nem poderia, já que se trata de debate posterior). Já na comparação com a Terra, as diferenças nos estágios de desenvolvimento em que se encontram as humanidades, apesar de enormes, não representam muros (ou fronteiras), mas germes da criação de uma nova sociedade, com condições reais de ocorrer, sem perder de vista as contradições, as tendências e as particularidades do modo de produção terráqueo. Parece que o romance de Bogdánov não sucumbiu àquilo que Friedrich Engels havia identificado nos fundadores do socialismo, a saber: neste livro, o exercício imaginativo, tão necessário às narrativas de ficção, resistiu a “degenerar em pura fantasia”, por mais que se trate de uma obra utópica de ficção científica. Poderia esse fato ser efeito de suas relações com Lênin, com o qual, todavia, estava prestes a romper? Isso não se pode afirmar; já a influência de Marx e Engels é evidente.

 

O ponto de vista materialista prevalece na visão de mundo geral que emana do romance – monológico, de modo que autor e narrador coincidem –, aparecendo nas falas das personagens e nas descrições do mundo estranho, alheio, organizado de maneira racional e igualitária, com seus inevitáveis impactos na vida cotidiana e nos modos de vida de sua humanidade, que a Lenny parecem tão superiores e inacessíveis, a ponto de sufocar e causar vertigem. Talvez, porém, o mais interessante da escrita de Bogdánov seja – e aqui estamos falando do autor do romance e não do autor do informe, criação engenhosa do primeiro – o uso do método dialético no que poderíamos chamar de tessitura dos fios narrativos. O autor de Estrela vermelha , na realidade, nos leva a Marte sem nunca nos deixar abandonar a Terra. Construída por meio da comparação entre dois mundos, a narrativa representa a síntese de um mundo possível.

A análise materialista das condições econômicas, políticas e sociais da vida terráquea permite ao autor apontar em dois sentidos. Em Marte, temos a utopia socialista, cuja representação é capaz de responder às perguntas de toda e qualquer pessoa que ouse imaginar – dos principiantes aos mais experimentados – como seria essa sociedade. Como será que se organiza a divisão do trabalho? Como seria a educação das crianças? Como seriam as moradias? Como se dariam as relações erótico-amorosas? Como seria o processo revolucionário mundial e o que aconteceria se ele, por um desvio burocrático, ficasse restrito a um único país? Algumas perguntas são instintivas, outras são de cunho empírico-teórico, algumas são incômodas e outras até parecem um sinal de alerta.

Talvez por isso os editores (ou censores?) soviéticos tiveram de mutilar o romance, cortando partes importantes, as quais, ainda que a priori , apresentavam ideias que contrariavam a linha oficial assumida pela URSS após 1930, a saber: o amor livre, a fruição sexual e de gênero sem as amarras de padrões previamente impostos, a questão das nacionalidades, o período de transição, entre outras – como o leitor poderá conferir nas notas de rodapé incluídas nesta tradução. Além dos cortes, é válido notar que, a partir da ascensão de Stálin, quando, ademais, as interferências diretas em obras de arte tornaram-se método, Estrela vermelha foi muito pouco publicado. Entre 1908 e 1929, recebeu diferentes reedições para depois cair no esquecimento e voltar a ser publicado só nos anos 1970, como parte de antologias de ficção científica. É que nem a utopia nem a distopia combinavam com o realismo socialista, que afirmava a construção do ideal do “aqui e agora”.

O balanço que Lenny faz de sua tarefa no fim do informe, ao qual recomendamos especial atenção por parte do leitor, é sóbrio, tocante e rico de lições. De modo geral, a sinceridade de suas palavras revela questões muito básicas, esquecidas até mesmo em detrimento de sua obviedade: assumir os erros do passado é fundamental para não os repetir, mas ter errado não é razão para que não se tente outra vez. É preciso sonhar, como disse Lênin em O que fazer? – com a ressalva de que, como sugerido no próprio título desta obra, de nada valerá sonhar se, ao fazê-lo, não nos orientarmos à ação.

1 Neste volume, p. 77.

2 A narrativa conta uma transferência inversa: a nova capital, construída por ordem do imperador num lugar pantanoso, uma cidade chamada Peregab (anagrama em russo de Peterburg, ou seja, Petersburgo) é destituída e a antiga capital, Kvamo (que lembra Moskvá, em russo, isto é, Moscou) volta a ser a cidade mais importante da Terra de Ofir. O ideal de Scherbátov consiste em um absolutismo iluminista.

3 Ao cair nas mãos de Catarina, que o condenou pelo espírito revolucionário, o livro resultou no exílio do autor, um dos dissidentes do Império Russo. A obra de Radíschev inspirou também os intelectuais que participaram da Revolta Dezembrista em 1825. Sem apoio do exército e menos ainda do povo, a Revolta fracassou, seus líderes foram executados e os demais enviados para Sibéria.

4 4338 é o ano que precede a destruição da Terra por um cometa. Nesse futuro, resultante das transformações advindas das reformas de Pedro, o Grande, só existem dois países, Rússia e China. Na Rússia, inclusive, não há mais duas capitais, Moscou e Petersburgo, pois ambas se juntaram em uma única e extensa megalópole. Entre outros avanços tecnológicos como trens, aviões e telégrafo, o autor profetizou o surgimento da internet e das redes sociais. Porém, ao contrário de Radíschev, Odóievski não faz críticas diretas à monarquia e servidão.

5 Aleksandr Bogdánov, Krásnaia zvezdá [Estrela vermelha] (São Petersburgo, T-vo khudoj. petchati, 1908).

6 Também chamados de “populistas russos”: trata-se do grupo ligado à organização revolucionária terrorista Naródnaia Vólia [A Vontade/Liberdade do Povo], surgido na Rússia na década de 1870, cuja ideologia pregava a aproximação da intelectualidade à vida do povo.

7 Trata-se do futuro cineasta Iúri Jeliábujski, presente na ocasião, por ser filho da companheira de Górki, Maria Andriéeva.

8 Nikolai Berdiáev, Samopoznánie [Autoconhecimento] (Leningrado, Lenizdat, 1991), p. 130.

9 Neste volume, p. 110. Grifo nosso.

[*] Tradutoras do livro.

  • Estrela vermelha pode ser encomendado à Editorial Boitempo

Este prefácio encontra-se em https://resistir.info/ .

26/Jul/20

 

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