“Pour sûr qu´elle était d´Antibes! / Et tout en étant Française /
Ça ne me mettait pas à l´aise / De la savoir Antibaise /
Moi qui serais plutôt pour”. Boby Lapointe
O pai dela era dono de um hotel semiestrelado em Paris, um prédio antigo de quatro andares com 30 quartinhos e um elevador acanhado de porta sanfonada onde mal cabia uma pessoa. Foi ali, no Hotel Du Levant, rue de L´Harpe, à margem esquerda do Sena, que Marie Françoise conviveu nos anos 70 com habituais hóspedes brasileiros, entre eles Glauber Rocha, Gil, Caetano, Gal, Betânia e o adorável trotskista Edmundo Moniz, todos baianos. Com eles, aprendeu a amar o Brasil e a Bahia. No encerramento das Olimpíadas 2016, lembrei a incrível história que há anos ela me contou.
Disse-me que os brasileiros logo lhe arrumaram um apelido inspirado na delirante canção de Boby Lapointe repleta de duplo sentido: “elle s´appelait Françoise“, mas “on l´appelait Framboise“. Chamá-la-emos temerariamente, pois, pelo apelido de Framboise, uma fruta apetitosa, e dessa forma disparamos um tiro certeiro no pianista.
Framboise não precisou de caravelas para descobrir o Brasil, o país inteirinho cabia naquele pequeno hotel do Quartier Latin por onde desfilavam jornalistas, estudantes, cantores, atores, cineastas, exilados, hipongas e – podes crer – toda espécie de bicho grilo verde-amarelo.
Desde sua adolescência, Framboise curtiu o tropicalismo, o cinema novo e a culinária brasileira, devorou Machado de Assis, Lima Barreto e, sobretudo, Jorge Amado, compartilhando impressões com os hóspedes que iam e vinham trazendo livros, discos, feijão preto e cachaça. Aplaudiu Gilberto Gil na Sala Wagram e riu quando Luiz Gonzaga, no Teatro Bobino, puxou o fole da sanfona anunciando alegre o começo de seu show: “Alô, alô seu francês, chegou a minha vez”. De quatro em quatro anos, na Copa do Mundo, torcia pela França e pelo Brasil.
O cordial Bertinho
Ela pretendia fazer o seu doutorado em letras, centrando o foco sobre literatura brasileira e quis verificar in loco como era mesmo o Brasil. No início de julho de 1973, viajou ao Rio no voo do boeing 707 da Varig, o mesmo avião que, ao retornar, incendiaria fazendo pouso forçado numa plantação de cebolas próxima ao aeroporto de Orly, o que causou a morte de 123 pessoas. Ela soube da notícia já na Bahia, pouco antes da experiência que viveu e lhe permitiu ver outros brasis.
Na reconstituição da história, sou obrigado a preencher lacunas da memória com a imaginação por desconhecer a geografia de Salvador. Foi mais ou menos assim. Framboise ficou hospedada na casa de uma amiga na av. Manoel Dias da Silva, em Pituba. No primeiro dia de Brasil, munida de um mapa, decidiu conhecer a Baixa dos Sapateiros. Entrou no ônibus e com sotaque cheio de erres e oxítonos perguntou ao motorista, um negão sorridente e gentil, se passava pelo centro histórico.
– Estamos indo no sentido contrário, para Boca do Rio. Desça na próxima parada, atravesse a avenida e pegue o ônibus de retorno. Vai passar por Amaralina, Rio Vermelho, Ondina, Barra, até o ponto final em Barris. Lá tem de pegar outro ônibus…
Diante da perplexidade da francesa, com dificuldades para entender o complicado trajeto, o motorista parou e, dirigindo-se aos dez ou doze passageiros, fez a pergunta para a qual o Brasil inteiro já tem a resposta, em se tratando de baianos:
– Tem alguém aqui com pressa?
– Se avexe não, meu rei – respondeu um coral de vozes, que só não acrescentou o “visse”, porque o Taquiprati não é o Velho Chico e somos contra vices, ainda mais traíras.
– Então, vou mudar a rota do ônibus para levar a moça lá na Baixa do Sapateiro. Por três razões: ela é estrangeira, é jovem e simpática e é muito, muito bonita. Depois a gente retorna.
Deu meia volta e acelerou em direção ao Centro Histórico, sem parar, sempre em conversa animada com Framboise, derramando todo seu charme. Ao se despedir, o negão se curvou, beijou a mão da francesa e mostrou suas credenciais:
– Alberto. Alberto Menezes. Mas pode me chamar de Berto, Bertinho.
Os passageiros aplaudiram calorosamente Bertinho, cujo nome agora não lembro mais se era mesmo Alberto ou Gilberto. Ando esquecendo as coisas depois que acabou o remédio belga Cogni+ para a memória, presente da Marilza Foucher. Não tenho dúvidas, porém, de que o outro sobrenome do motorista era Moraes ou uma coisa assim.
Antibaise
Framboise me confessou que foi a maior homenagem que recebeu em sua vida e que um gesto cortês, mas transgressor como esse, transformando um ônibus em táxi, era impensável em qualquer outro país, aonde seria mal interpretado e reprimido. É verdade que Bertinho, um cavalheiro, tinha segundas intenções, mas Framboise não abriu a guarda, embora não fosseantibaise, como a Framboise da canção de Boby Lapointe, repleta de humor, sarcasmo, jogo de palavras e trocadalhos do carilho.
Na França, por muito menos do que isso, um personagem de Julio Cortázar foi execrado. Na hora de descer do ônibus de uma linha regular de Paris, o cara resolveu ser gentil e se dirigiu ao motorista em voz alta num longo discurso que iniciou assim:
– Quero parabenizá-lo e manifestar publicamente meu agradecimento por sua forma correta de conduzir, que proporcionou a mim e aos demais passageiros viagem tão agradável e tranquila, sem sobressaltos. São motoristas assim que honram a profissão etc e tal e pererê-pão-duro…
Um silêncio ensurdecedor tomou conta do ônibus ali parado, alguns passageiros esboçaram risinho irônico, mas todos balançaram a cabeça e fizeram impacientes caretas em sinal de reprovação, como se gritassem, o que não fizeram porque são discretos:
– Ouh là là, vous êtes dingue? Tá louco, cara! Desce que a gente está com pressa.
O que me fez lembrar Françoise e Bertinho foi o espetáculo de rara beleza no encerramento das Olimpíadas domingo passado no Maracanã. A festa foi a negação das arbitrariedades e dos desmandos cometidos para a realização dos jogos no Rio. O Brasil inteiro estava lá: Pixinguinha, Noel, Martinho da Vila, Ernesto Nazaré, Villa-Lobos, Carmen Miranda, Luiz Gonzaga, Tom Zé, os passistas de frevo, as rendeiras da Bahia, os bonecos de barro, as pinturas rupestres da Serra da Capivara e, especialmente, o coral das crianças guarani entoando música sagrada, de arrepiar a alma.
“Alma brasileira – Luzes e Sombra” foi justamente o tema do congresso realizado em Búzios (RJ), em 2014, que discutiu a formação nacional brasileira, criticou o ufanismo e o complexo de vira-lata e retomou criticamente a noção do “homem cordial”, ora visto como fraterno, ora como produto de um sistema clientelista e coronelista.
A festa no Maracanã nos deu a sensação de que é possível construir um puta país sem essas figuras sebentas e essas alminhas sebosas. Com a “revolução vertical” defendida por Sérgio Buarque em “Raízes do Brasil”, os estratos oprimidos emergiriam, sepultando as “camadas dominantes”, os Cunha, os Temer, os Renan, os Jucá, os Gilmar, os Toffoli e até mesmo os patéticos três patetas que, fora Temer, estavam no encerramento: Nuzman – presidente do Comitê Olímpico, Paes – prefeito do Rio e Rodrigo Maia – substituto à altura do Cunha na presidência da Câmara. Sem eles, outro Brasil é possível.
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