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sexta-feira, 29 março, 2024

As revoluções camponesas de 1917 

Sarah BadcockJacobin Magazine
Em 1917, os camponeses eram fator decisivo no jogo político. Definiam respostas dos políticos aos desafios nacionais; produziam, controlavam e decidiam sobre os suprimentos de alimento; os soldados eram camponeses armados e uniformizados, fazendo e acontecendo no mundo do poder político; e, porque eram a maioria dos moradores das cidades russas, também tiveram papeis chaves nos levantes urbanos.

Apesar disso, quando se fala de revoluções camponesas, em geral falamos de batalhas rurais em disputa pelo uso e pela propriedade da terra. E, embora mais de 80% da população da Rússia vivesse em áreas não urbanas em 1917, os especialistas quase sempre marginalizam a experiência dos camponeses da Revolução Russa e sua participação nela, preferindo concentrar as atenções nos trabalhadores urbanos e na intelligentsia.

A diversidade e a complexidade dos levantes rurais diluem quaisquer pressupostos que se tenham sobre a natureza da ação camponesa. Revelam também suas extraordinárias criatividade e natureza transformadora.

Não é empreitada fácil definir levantes camponeses. Ao se espalharem ao longo de 1917, temporalmente e geograficamente, tomam formas tão diversas quanto as do vasto território do Império Russo.

Frequentemente, a qualidade da terra e da cultura local determina o formato desses levantes. Enquanto muitos imaginam ataques violentos a proprietários e tomada violenta de propriedades, muitas lutas camponesas se desenrolaram pacificamente. Confronto violento atrai mais atenção, mas implica maiores riscos para os participantes. Muitos dos camponeses da Rússia empreenderam ação calma e ponderada, embora provavelmente não tenha sido essa a impressão que deixaram nos que tiveram suas propriedades redistribuídas.

Alguns camponeses engajaram-se em revoltas ‘discretas’ simplesmente abrindo um portão e deixando passar o rebanho da aldeia, para que pastasse nas terras do proprietário da gleba. Algumas comunidades produziram documentos com ares de oficiais, que garantiam a elas o uso perpétuo de recursos locais. Levantes mais arrojados viram os aldeões trabalhando juntos para tirar madeira de alguma floresta próxima.

Infelizmente, não há relatos completos de todos os modos pelos quais os trabalhadores do campo contribuíram para aquele ano revolucionário. O que sabemos, demonstra ampla coleção de táticas, atores e objetivos os quais teriam, todos, papel decisivo no estado russo pós-revolucionário.

Chega a modernidade

O termo “camponês” de modo geral refere-se a quem vivia e trabalhava em áreas rurais, mas, na Rússia, também se referia a uma categoria legal – soslovie –que aparecia inclusive no passaporte do indivíduo. Os camponeses russos podiam viver em áreas urbanas, viver como operários ou comerciantes e prestar serviço militar.

No início do século 20, a modernidade chegou à Rússia rural, coexistindo com eles e transformando os elementos tradicionais da vida camponesa definida pelo patriarcado, pela ortodoxia religiosa e comunalidade.

As estruturas do poder patriarcal garantiam que os homens mais velhos dominassem a família e a comunidade. A fé ortodoxa russa tinha papel importante na vida social, cultural e espiritual para muitos russos. E os sistemas comunais de manejo da terra que existiam em muitas áreas, facilitavam o uso coletivo dos recursos e reforçavam as estruturas sociais do patriarcado. Todos esses traços davam à Rússia rural certo grau de paroquialismo, e a política enfatizava os interesses locais sobre as preocupações nacionais.

A modernidade desafiou esses padrões tradicionais de várias maneiras. Depois da emancipação dos servos em 1861, a educação primária acelerou nas áreas rurais do país, produzindo uma geração de jovens alfabetizados. Enquanto isso, milhões migravam todos os anos para centros urbanos e voltavam com ideias e costumes da metrópole, dentre os quais o secularismo e a cultura do consumo.

Governos locais e tribunais regionais eleitos ofereciam à população rural novos modos de comunicar-se com o estado, que os camponeses aproveitaram com entusiasmo. Depois da revolução de 1905, vários camponeses apresentaram-se para votar em eleições nacionais e se revelaram reivindicadores insistentes no contato com os representantes regionais.

Finalmente, a mobilização para a guerra de 1914 forçou mudança significativa entre os homens das aldeias que pegaram em armas – alguns com fervor patriótico, outros muito relutantes — e passaram a mover-se por todo o vasto império russo.

Essas conexões com o mundo externo à próprias pequenas vilas, significaram que, à altura de 1917, os camponeses já não viviam isolados em sua pré-modernidade. Tinham relações com o Estado e a Nação, e por várias vias. A alfabetização crescente permitiu aos camponeses engajarem-se nas agendas políticas nacionais e regionais, e a experiência de grandes centros urbanos inspirou os jovens a desafiar a dominação patriarcal pelos homens mais velhos.

Formas Revolucionárias

“A água é sua, a luz é sua, a terra é sua, a madeira é sua.”

Essas palavras, ditas por um marinheiro-agitador numa reunião em Kazan em junho de 1917, capturam o elemento fundamental das aspirações revolucionárias dos camponeses. A declaração sem rodeios de que terra e madeira, como água e ar, pertencem aos que deles necessitam foi muitas vezes repetida no ano da Revolução e dali em diante.

Em áreas antes dominadas pelo regime de servidão, antigos servos padeciam ressentimento profundo quanto ao acorde desigual de emancipação. As invasões para tomar terras tendiam a se tornar violentas nas áreas onde os camponeses tinham relações hostis com os donos das terras.

O que se conhece do formato e da intensidade das revoluções rurais advém, principalmente, dos chamados “relatórios de perturbações”, feitos basicamente a partir de reclamações dos proprietários de terras privadas. Esses relatórios informam que as partes da Rússia onde havia os solos mais férteis correspondiam às áreas onde se registravam maior número de perturbações. Indicam também que áreas com alta concentração de glebas com servos também registraram mais agitação, mais ataques violentos aos proprietários individuais e maior número de invasão e ocupação de mansões privadas. Mas essas estatísticas não oferecem quadro completo dos levantes rurais, porque só consideram um tipo específico de ação.

Apesar de quase sempre os assaltos violentos e a redistribuição forçada serem dados como exemplos da revolução camponesa, não foram típicos, de modo algum. De fato, à altura de 1917, só uma pequena proporção de terra arável ainda pertencia à elite. Em algumas regiões, como Viatka, praticamente já não havia donos de terra que pertencessem à nobreza.

Revolução de Fevereiro disparou uma grande onda de aspirações e ações camponesas, mas o modo como os revolucionários rurais lutaram por igualdade dependeu do uso local da terra e dos padrões de propriedade, caso a caso. Muitas dessas ações não envolveram violência nem tomadas forçadas de propriedades. Em vez disso, as comunidades rurais testaram os limites e transgrediram as leis da propriedade privada, tentando simultaneamente se proteger de possível repressão.

Por exemplo, os camponeses da vila de Aryshkadza simplesmente anunciaram que semeariam os campos do proprietário local de terras, para uma colheita de inverno, e que os empregados do proprietário local teriam um dia para deixar as terras. Os empregados saíram, e os camponeses de Aryshkadza semearam a terra.

Além do mais, não podemos considerar essas revoluções camponesas como fenômeno baseado na classe, porque o campesinato não formava classe coerente. Isso posto, os camponeses autodescreviam-se em termos gerais como trabalhadores rurais, o que modelava sua visão de mundo e suas ações. Em algumas revoluções camponesas, houve comunidades que agiram coletivamente contra donos de terras, e de modo que se assemelhava a levantes baseados na divisão por classes, com oprimidos lutando contra seus opressores diretos. Mas muitos outros só conheceram disputas pelo uso da terra entre comunidades vizinhas ou entre indivíduos.

Por exemplo, os aldeões mais frequentemente tomavam por alvo camponeses que tivessem escolhido trabalhar como agricultores individuais, que terra comunal; e quase sempre, nesses casos, empurraram-nos de volta à agricultura comunitária. Toda a vila em geral executava esses ataques, buscando reintegrar o fazendeiro individualista e suas terras. Nas aldeias havia níveis significativamente diferentes de riqueza e poder, mas esses níveis não eram nem fixos nem sustentados –, e indivíduos moviam-se para cima e para baixo nas respectivas hierarquias locais.

Enquanto isso, o governo central apoiava as queixas dos proprietários privados e ordenava que as comunidades rurais respeitassem a propriedade privada. Mas não tinha meios para forçar o cumprimento dessas ordens, e em 1917 as transgressões e os ataques à propriedade privada já aumentavam a olhos vistos.

Quem liderou as revoluções rurais?

Só podemos contar com fragmentos de provas sobre indivíduos e grupos que lideraram revoluções camponesas. Comitês, sovietes e sindicatos assumiram a liderança em muitas vilas, emitindo ordens sobre uso e administração das terras. Essas organizações ofereceram uma base institucional para as ações dos camponeses.

Algumas delas, como os sovietes de representantes de camponeses, pertenciam a redes regionais e nacionais, e o Governo Provisório estabeleceu comitês para a terra e provisões. Mas essas instituições locais só conservavam o controle se respondessem diretamente às demandas de seus representados. Como o comitê da vila de Sotnursk lembrou às suas autoridades regionais, “Nós elegemos vocês. Vocês têm de ouvir o que dizemos.”

Muitas evidências indicam que só pessoas integradas na comunidade camponesa assumiram o poder. A chamada intelligentsia da aldeia – professores, médicos, especialistas agrários e sacerdotes – foram sempre sistematicamente excluídos dos gabinetes eleitos e de modo geral sequer são citados em relatos de revoluções camponesas. Registros eleitorais mostram que os aldeões preferiam candidatos alfabetizados, não dados ao vício da bebida, sensíveis e confiáveis, e que também fossem camponeses. A diversidade de ação que constituiu as revoluções camponesas contudo significa que não se podem tipificar os líderes – algumas revoluções rurais envolveram toda a comunidade da aldeia, algumas foram lideradas por mulheres, e grupos de aldeias mais ricas lideraram outras.

A Revolução de Fevereiro transformou o status e o poder dos soldados comuns, que se tornaram protetores armados do movimento. Desertores, soldados de folga e homens acampados em guarnições da retaguarda todos tiveram papel importante na política da aldeia. Foram o mais próximo de ‘gente de fora’, se se pode classificá-los assim, que lideraram revoltas camponesas.

Porque os soldados são expostos à violência, treinados e equipados para a violência, a atividade revolucionária rural mais frequentemente se tornou violenta nos casos em que soldados participaram do movimento. Algumas vezes, toda a comunidade participava desses assaltos. Por exemplo, uma multidão de soldados, acompanhados por aldeãs e seus filhos conseguiu expulsar Natalia Neratova de suas terras, em maio de 1917.

No início da revolução, a política partidária tinha papel apenas marginal nas atividades dos camponeses. O Partido Socialista Revolucionário de Viktor Chernov desenvolveu forte base rural de apoio, especialmente nas terras do centro da Rússia, como se viu nas eleições para a Assembleia Constituinte em novembro. Em termos nacionais, o Partido Revolucionário Socialista conseguiu 37% contra 23% dos bolcheviques, mas esses números não mostra as proporções da dominação do partido de Viktor Chernov em outras regiões. Nas regiões do norte, obteve 76% dos votos; e 75% na região das Terras Negras Centrais.

O partido capitalizou a própria imagem de partido de camponeses e suas fortes afinidades locais, pata garantir apoio eleitoral, mas não liderou a revolução rural. Ativistas desse partido só assumiram papeis de liderança nas aldeias, nos casos em que abraçaram os desejos e motivações dessas comunidades.

Divisão Urbano x Rural

As revoluções rurais deixaram exposto o nenhum poder das autoridades nacionais e regionais. Nem o Governo Provisório nem o Soviete de Petrogrado deu atenção às preocupações e demandas dos camponeses. Só faziam pedir às populações rurais que esperassem pacientemente pela Assembleia Constituinte, que afinal faria a redistribuição das terras.

Os camponeses em grande número de casos ignoraram esses apelos, e o governo central não conseguiu impedir suas ações. As autoridades regionais começaram 1917 com a crença de que as revoluções rurais emergiam de mal-entendidos, e assumiram que conciliação e educação poriam fim aos distúrbios. À altura do verão daquele ano, a firmeza advinda da autoconsciência nas comunidades rurais que buscavam fazer suas próprias revoluções, sem qualquer atenção aos planos centrais, já minara completamente aquela fé inicial.

Autoridades regionais cada vez mais passaram a se servir de força armada para controlar as áreas rurais. Um punhado de líderes mais sensíveis, tentando controlar os camponeses, autorizaram a transferência preventiva de terra privada, para comitês locais. Mas os levantes continuaram sem ceder, porque nenhum poder havia, nem central nem regional, que pudesse implantar qualquer política.

Depois que os bolcheviques chegaram ao poder em Outubro de 1917, Lênin imediatamente promulgou o Decreto Sobre a Terra, pelo qual toda a terra reservada por propriedade privada em todo o país, foi transferida para uso dos camponeses. Ironicamente, essa ordem demonstrou cabalmente a impotência do governo central, porque os camponeses, em outubro, já haviam tomado quase toda a terra privada. O decreto de Lênin sobre a propriedade da terra foi como que um presságio da batalha pelo controle da economia rural que viria a ser traço chave da guerra civil na Rússia.

A história da revolução agrária russa ainda está por ser decifrada completamente, e o que já se sabe dela pinta quadro muito mais rico da Rússia em 1917.*****

[1] Sarah Badcock é professora associada de História, na University of Nottingham, especializada no fim do império russo e Revolução Bolchevique. Estuda também a história das punições.

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