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quinta-feira, 28 março, 2024

Assange, o prisioneiro que diz não ao big brother

por John Pilger [*]

Sempre que visito Julian Assange, encontramo-nos numa sala que ele conhece demasiado bem. Há uma mesa nua e fotos do Equador nas paredes. Há uma estante onde os livros nunca mudam. As cortinas estão sempre cerradas e não há luz natural. O ar é abafado e fétido.

Isto é a Sala 101.

Antes de eu entrar na Sala 101 devo entregar meu passaporte e telefone. Meus bolsos e objetos são examinados. O alimento que trago é inspecionado.

O homem que guarda a Sala 101 senta-se no que parece uma cabine telefônica fora de moda. Ele está diante de um écran, a observar Julian. Há outros agentes do estado, que não são vistos, a observar e ouvir.

As câmaras estão por toda a parte na Sala 101. Para evitá-las, Julian nos leva para um canto, lado a lado, encostados contra a parede. É assim que nós trocamos notícias: murmurando e escrevendo um ao outro sobre um bloco de notas, o qual ele esconde das câmaras. Por vezes rimos.

Tenho meu período de tempo designado. Quando este expira, a porta na Sala 101 é aberta de repente e o guarda diz: “Tempo acabado!” Na véspera do Ano Novo, foi-me permitido um extra de 30 minutos e homem na cabine telefônica desejou-me um feliz ano novo, mas não a Julian.

Certamente a Sala 101 é a sala do romance profético de George Orwell, 1984, onde a polícia do pensamento observava e atormentava seus prisioneiros e, pior, até que desistissem da sua humanidade e princípios e obedecessem ao Big Brother.

Julian Assange nunca obedecerá ao Big Brother. Sua resiliência e coragem são espantosas, muito embora sua saúde física custe a manter-se.

Julian é um australiano eminente, que mudou o modo como muitas pessoas pensam acerca de governos dúplices. Por isto, ele é um refugiado político sujeito ao que as Nações Unidas chamam de “detenção arbitrária”.

A ONU diz que ele tem o direito de passagem livre para a liberdade, mas isto é negado. Ele tem o direito a tratamento médico sem receio de prisão, mas isto é negado. Ele tem direito a compensação, mas isto é negado.

Como fundador e editor da WikiLeaks , o seu crime tem sido o de dar sentido a tempos negros. A WikiLeaks tem um registo impecável de precisão e autenticidade que nenhum jornal, nenhum canal de TV, nenhuma estação de rádio, nem o New York Times, nem o Washington Post, nem o Guardian podem igualar. Na verdade, isto envergonha-os.

Isso explica porque ele está a ser punido.

Por exemplo:

Na semana passada, o Tribunal Internacional de Justiça determinou que o governo britânico não tem poderes legais sobre os habitantes das Ilhas Chagos, os quais nas década de 1960 e 70 foram expulsos em segredo do seu lar em Diego Garcia, no Oceano Índico, e enviados para o exílio e a pobreza. Morreram incontáveis crianças, muitas delas de tristeza. Isto foi um crime enorme que poucas pessoas conhecem.

Durante quase 50 anos os britânicos negaram aos ilhéus o direito de retorno ao seu lar, o qual eles entregaram aos americanos para uma importante base militar.

Em 2009, o Foreign Office britânico cozinhou uma “reserva marinha” em torno do arquipélago Chagos.

Esta tocante preocupação para com o ambiente foi denunciada como uma fraude quando a WikiLeaks publicou um telegrama secreto do governo britânico a tranquilizar os americanos dizendo que “os antigos habitantes descobririam que é difícil, se não impossível, continuar com sua reivindicação de restabelecerem-se nas ilhas se todo o Arquipélago Chagos fosse uma reserva marinha”.

A verdade da conspiração influenciou claramente a decisão capital do Tribunal Internacional de Justiça.

A WikiLeaks também revelou como os Estados Unidos espiam seus aliados; como a CIA pode observá-lo através do seu iPhone; como a candidata presidencial Hillary Clinton recebeu vastas somas de dinheiro da Wall Street para discursos secretos que reconfortavam os banqueiros [a dizer] que se fosse eleita ela seria amiga deles.

Em 2016 a WikiLeaks revelou uma conexão directa entre Clinton e o jihadismo organizado n Médio Oriente: terroristas, por outras palavras. Um email revelou que quando Clinton era secretária de Estado dos EUA ela sabia que a Arábia Saudita e o Qatar estavam a financiar o Estado Islâmico, mas ela aceitou de ambos os governo enormes donativos para a sua fundação.

Ela a seguir aprovou a maior venda de armas já realizada no mundo para os seus benfeitores sauditas: armas que actualmente estão a ser utilizadas contra o povo agredido do Iémen.

Isto explica porque ele está a ser punido.

A WikiLeaks também publicou mais de 800 mil ficheiros secretos da Rússia, incluindo o Kremlin, contando-nos mais acerca das maquinações de poder naquele países do que a enganosa pantomina histérica do Russiagate em Washington.

Isto é jornalismo real – jornalismo de uma espécie agora considerada exótica: a antítese do jornalismo de Vichy, o qual fala ao inimigo do povo e recebe esta alcunha do governo de Vichy que ocupava a França em nome dos nazis.

O jornalismo de Vichy é censura por omissão, tal como escândalo não contado da conivência entre os governos australiano e dos EUA para negar a Julian Assange seus direitos como cidadão australiano e para silenciá-lo.

Em 2010, a primeira-ministra Julia Gillard chegou a ordenar à Polícia Federal australiana para investigar Assange e a WikiLeaks com a esperança de processá-lo – até que foi informada pela AFP de que nenhum crime havia sido cometido.

No último fim-de-semana o Sydney Morning Herald publicou um luxuoso suplemento promovendo uma celebração do “Eu também” (“Me Too”) no Sydney Opera House em 10 de Março. Entre os principais participantes está o recentemente reformado ministro dos Negócios Estrangeiros, Julie Bishop.

Bishop tem aparecido ultimamente nos media locais, louvado como uma perda para a política: um “ícone”, alguém a chamou assim, a ser admirado.

A elevação à celebridade feminista de alguém tão politicamente primitivo como Bishop diz-nos quando a chamada política da identidade subverteu o essencial: a verdade objectiva: o que importa, acima de tudo, não é o seu género mas a classe a que você serve.

Antes de ter entrado na política, Julie Bishop era uma advogada que servia o notório mineiro de amianto James Hardi, o qual combatia reivindicações de homens e suas famílias a morrerem horrivelmente de amiantose.

O advogado Peter Gordon recorda Bishop a “retoricamente perguntar à corte porque trabalhadores deveriam ter direito a saltar filas [de prioridade] no tribunal só porque estavam a morrer”.

Bishop diz que ela “atuou com instruções… profissionalmente e eticamente”.

Talvez ela estivesse meramente a “atuar com instruções” quando voou para Londres e Washington no ano passado com a sua chefe de gabinete ministerial, a qual indicou que a ministra australiana dos Negócios Estrangeiros levantaria o caso Julian e esperançosamente iniciaria o processo diplomático para traze-lo de volta ao seu país.

O pai de Julian escreveu uma comovente carta ao então primeiro-ministro Malcolm Turnbull, pedindo-lhe que o governo interviesse diplomaticamente para libertar o seu filho. Ele disse a Turnbull recear que Julian pudesse não sair vivo da embaixada.

Julie Bishop teve toda a oportunidade no Reino Unido e nos EUA de apresentar uma solução diplomática que traria Julian de volta a casa. Mas isto exigia a coragem de alguém orgulhoso por representar uma nação soberana, um estado independente, não um vassalo.

Ela, ao invés, não fez qualquer tentativa de contradizer o secretário britânico dos Negócios Estrangeiros, Jeremy Hunt, quando ele disse de modo ultrajante que Julian “enfrentava graves acusações”. Que acusações? Não havia acusações.

A ministra australiana dos Negócios Estrangeiros abandonou o seu dever de falar alto em defesa de um cidadão australiano, perseguido por nada, acusado com nada, culpado de nada.

Será que estas feministas que adularão este falso ícone no Opera House no próximo domingo recordar-se-ão do seu papel em conivência com forças estrangeiras para punir um jornalista australiano, o único cujo trabalho revelou como o militarismo predatório esmagou as vidas de milhões de mulheres comuns em muitos países: só no Iraque, os EUA dirigiram uma invasão do país, no qual a Austrália participou, que deixou 700 mil viúvas.

 

Então o que pode ser feito? Um governo australiano que estava pronto a atuar em resposta a uma campanha pública para resgatar o jogador de futebol refugiado, Hakeem al-Araibi, da tortura e perseguição no Bahrain, seria capaz de trazer Julian Assange de volta a casa.

Mas a recusa do Departamento de Negócios Estrangeiros em Camberra de honrar a declaração das Nações Unidas de que Julian é vítima de “detenção arbitrária” e tem um direito fundamental à sua liberdade é uma ruptura vergonhosa do espírito do direito internacional.

Por que o governo australiano não fez nenhuma tentativa séria para libertar Assange? Por que Julie Bishop inclina-se aos desejos de duas potências estrangeiras? Por que esta democracia traduz-se pelo seus relacionamentos servis e integra-se com uma potência estrangeira fora da lei?

A perseguição de Julian Assange é a conquista de todos nós: da nossa independência, do nosso auto-respeito, do nosso intelecto, da nossa compaixão, da nossa política, da nossa cultura.

Assim, parem com rodeios. Organizem. Ocupem. Insistam. Persistam. Façam barulho. Tomem acção directa. Sejam corajosos e permaneçam corajosos. Desafiem a polícia do pensamento.

Guerra não é paz, liberdade não é escravidão, ignorância não é força. Se Julian pode enfrentar o Big Brother, então você também pode: todos nós podemos.

[*] Discurso no comício em Sydney em favor de Julian Assange, organizado pelo Socialist Equality Party. Acompanhe John Pilger no twitter @johnpilger.

Ver também:

The Persecution of Julian Assange Is the Persecution of Truth

O original encontra-se em johnpilger.com/articles/the-prisoner-says-no-to-big-brother

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

08/Mar/19

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