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sexta-feira, 29 março, 2024

Brexit: Uma revolta contra a hegemonia da finança globalizada

por Prabhat Patnaik [*]
Cameron, cartoon de Fernão Campos. Quase todos os comentaristas que dissertaram acerca do voto do eleitorado britânico a favor do abandono da União Europeia, quer da direita quer da esquerda, deixaram de captar o ponto essencial do mesmo:   que se trata de uma revolta maciça contra a hegemonia da finança globalizada. Na verdade, o facto de não terem percebido este ponto é em si mesmo indicativo da omnipresença desta hegemonia entre os literati, dos quais o eleitorado britânico, de modo interessante, parece ter-se libertado substancialmente.
Sem dúvida, alguns, incluindo o presidente Barack Obama, foram suficientemente antecipativos para ver o Brexit como uma rejeição da globalização. Mas eles atribuíram-na a um medo ilegítimo da globalização, o qual precisa ser apaziguado, ao invés de uma cólera legítima contra ele, resultante daquilo que a hegemonia da finança globalizada fez à economia britânica. Eles em suma defendiam a globalização, a qual sustentam ser benéfica, enquanto ignoravam sua principal característica, nomeadamente a globalização do capital financeiro, cujas consequências perniciosas preferiram ignorar.
ATITUDE DA ESQUERDA EUROPEIA
Esta tendência de destacar os benefícios da globalização (“traz maior aproximação à espécie humana”), enquanto se minimizam as implicações da hegemonia do capital financeiro sobre este processo, caracteriza, infelizmente, a atitude de grande parte da própria esquerda europeia. Grande parte desta esquerda tem sido uma forte apoiante da União Europeia, como corporificação da transcendência de conflitos “nacionais” que infestaram a Europa na primeira metade do século XX, muito embora a própria UE tenha sido dominada pelo capital financeiro alemão. A referida esquerda procurou ultrapassar esta contradição óbvia com a esperança irreal, a qual não é senão uma mera suposição, de que dentro da UE a hegemonia do capital financeiro alemão pode ser neutralizada (negated) através de pressão democrática.
Esta suposição foi aceite pelo Syriza na Grécia e sua invalidade foi revelada no caso da própria Grécia, deixando o Syriza sem outra opção dentro da UE senão a de aceitar ainda outro lancinante pacote de “austeridade” imposto pelo ministro alemão das Finanças Wolfgang Schauble, a atuar como representante do capital financeiro. Este processo também incapacitou a esquerda como um todo de se tornar uma força coerente, deixando assim o caminho aberto para partidos de extrema-direita, racistas, fascistas ou semi-fascistas aproveitarem o descontentamento do povo com a crise engendrada pela globalização sob a hegemonia do capital financeiro.
Isto também ficou claramente evidente no caso da Grã-Bretanha. Jeremy Corbyn, o líder do Labour que é um acérrimo oponente da “austeridade” que o capital financeiro impôs à UE, e portanto à Grã-Bretanha, ao invés de liderar a luta contra uma UE dominada pelo capital financeiro, pediu ao povo que votasse pela “permanência” na UE, refletindo portanto o primeiro-ministro Tory David Cameron e seguindo alinha da “City of London” (o sítio do capital financeiro britânico). Embora um segmento da esquerda (a chamada “Lexit”) fizesse campanha por uma saída britânica da UE, ela naturalmente foi enfraquecida pela fragmentação da esquerda. A iniciativa de exprimir a cólera popular nesta situação foi capturada pela ultra-direita do United Kingdom Independent Party (UKIP) e uma secção dos Tories liderada pelo antigo presidente da municipalidade de Londres, Boris Johnson.
O facto de o voto “exit” ter sido aparentemente influenciado pela retórica contra a imigração (as regras da UE impõem que todos os países membros aceitem imigrantes dos outros países membros) e portanto tingida por uma visão racista do mundo, foi mencionado pelos seus oponentes como argumento para rejeitar a opção da “saída”. Não está claro em que medida esta acusação é verdadeira. Mas, qualquer que tenha sido o matiz racista atado ao campo do “exit” ele verificou-se precisamente porque a esquerda e o centro-esquerda (incluindo acima de tudo o Partido Trabalhista) preferiram ignorar a cólera do povo contra o alto desemprego e a crise imposta pelo capital financeiro e pediram-lhe que votasse pela “permanência”.
A cólera popular, ao invés de assumir implicações racistas, podia ter sido dirigida conscientemente contra a hegemonia do capital financeiro e a sua dominação sobre a UE – e um cenário de ação alternativa podia ter sido apresentado se a esquerda se houvesse empenhado seriamente para pressionar por um “desligamento” de uma globalização dominada pela finança. Mas ao invés disso foi permitido que a votação fosse explorada pelas forças da ultra-direita (não irrevogavelmente, esperemos) devido à pusilanimidade da esquerda ao não pressionar pelo “desligamento”. Os motivos da esquerda para não atuar assim, baseados sem dúvida num desejo de transcender o passado “nacionalista” destrutivo da Europa, podem ser louváveis. Mas a sua suposição para não atuar desse modo, nomeadamente de que alguém pode controlar o capital financeiro mesmo sem o “desligamento” do fenómeno da globalização financeira, foi claramente errado. No caso, o voto Brexit representou uma revolta não auto-consciente contra a hegemonia da finança, com aqueles que sozinhos podiam ter conduzido a uma revolta auto-consciente, a optarem por não desempenhar tal papel.
A sua culpabilidade é ainda maior do que sugeri. Tenho até agora utilizado a palavra “povo”, mas claramente o grosso do voto anti-UE veio da classe trabalhadora inglesa. Segundo um relatório, até 63 por cento dos eleitores do Labour votaram contra a permanência na UE. Uma vez que o grosso dos eleitores do Labour, mesmo nos dias de hoje apesar dos anos de blairismo, pertencem à classe trabalhadora, claramente a classe trabalhadora inglesa rejeitou esmagadoramente a UE, na qual, tristemente, o grosso da esquerda e centro-esquerda aconselhava a votar. Dificilmente se pode imaginar um caso mais rematado de desconexão (disjunction) entre uma classe e aqueles que afirmam representá-la. Enquanto a classe revoltava-se contra a hegemonia do capital financeiro, aqueles que supostamente a lideravam seguiam a linha da finança.
Quando digo revolta contra o capital financeiro, não me refiro apenas ao capital alemão. Quero dizer acima de tudo contra o próprio capital financeiro britânico. (Para dizer de modo diferente, é o capital financeiro globalizado, não importa quais as suas origens nacionais, o qual opunha-se ao Brexit). A City sempre foi resolutamente a favor da Europa, a fim de frustrar a ambição de Frankfurt de substituir Londres como centro financeiro do continente, o que seria o caso se a Grã-Bretanha se afastasse. A City foi instrumental na promoção da entrada da Grã-Bretnha na Europa. Ela também foi instrumental em livrar-se de Margaret Thatcher como primeiro-ministro quando ela começou a exprimir sentimentos anti-europeus. Mesmo neste referendo, a City fez campanha vigorosa contra o Brexit. E não deveria ser surpresa que além da Escócia e Irlanda do Norte, onde sentimentos pró-europeus podem ter sido fortalecidos por um nacionalismo anti-inglês (o que mais uma vez testemunha uma leitura totalmente errada da situação por parte da esquerda que de outra forma poderia ter acalmado suas preocupações), a única outra região do país que apoiou a “permanência” fosse a cidade de Londres (apesar de Boris Johnson). Sem dúvida o facto de Londres ter uma população imigrante apreciável que estaria inclinada a opor-se ao Brexit foi um fator por trás da sua votação no “remain”. Mas a influência do capital financeiro britânico também desempenhou um papel significativo.
IMPLICAÇÕES CRUCIAIS
Os próximos tempos vão ser extremamente difíceis para o povo britânico, por várias razões. A primeira é que qualquer “desligamento” da hegemonia do capital financeiro globalizado acarreta necessariamente sérios problemas de transição. Estes incluem fuga de capitais, um colapso da divisa, um agravamento da balança de pagamentos e uma aceleração da inflação, todos os quais prejudicam o próprio povo que optou pelo “desligamento”. Isto no momento devido afetará a Grã-Bretanha e com particular severidade porque é uma economia altamente aberta.
Em segundo lugar, a Grã-Bretanha já tinha problemas sérios antes do referendo do Brexit devido a um grande défice em conta corrente (que monta até a 7 por cento do PIB). Sustentar um tal défice é extremamente difícil, mesmo nos melhores tempos. Mas fazer isso num período de antagonismo em relação à finança globalizada é duplamente difícil.
Em terceiro lugar, o capital financeiro está em vias em tomar todos os passos concebíveis para tornar difícil a vida do povo britânico devido ao seu voto pelo Brexit. Tendo perdido a batalha, o que nunca esperara, ele tentará agora vencer a guerra pela manipulação da situação de um modo que o povo desobediente será forçado a prostrar-se diante dele.
E em quarto lugar, no preciso momento em que o povo provavelmente enfrentará imensas dificuldades, ele está destituído de lideranças das forças de esquerda. Os Nigel Farages (chefe do UKIP) e os Boris Johnsons do mundo são particularmente incapazes de liderá-los em qualquer luta contra a finança globalizada (de facto, como todos os fascistas, o UKIP estaria à espera de ser cortejado pelo capital financeiro e o mesmo seria verdadeiro em relação a Johnson). A esquerda sozinha tinha a visão de assim fazer mas preferiu abandoná-lo. O povo está, em suma, empenhado numa luta de classe contra a hegemonia da finança em que as probabilidades de êxito acumulam-se contra si e foi abandonado pela sua liderança tradicional.
A menos que o Labour Party (atualmente sob uma liderança supostamente de esquerda) rectifique o seu erro e aprenda a ouvir e respeitar a voz da sua própria base de apoio, o povo descobrirá ser difícil sustentar uma luta que lançou contra a finança. O Labour Party deve cumprir o resultado do referendo (o que foi feito mesmo por David Cameron), pedir novas eleições gerais imediatas e abordar o eleitorado com um programa novo crível. Tal programa deve incluir o fim da “austeridade”, a conexão a outras formações de esquerda como o Podemos que estão à beira do poder [NT] e a tomada disposições imediatas para financiar o défice em conta corrente de maneira a que isso não implique “austeridade” e simultaneamente passos para reduzir este défice através de, se necessário, de medidas diretas.
Mas aconteça o que acontecer na Grã-Bretanha no futuro próximo, o voto britânico para abandonar a UE tem duas implicações cruciais para a economia capitalista mundial como um todo. Primeiro, ele sublinha e agrava a crise na qual o capitalismo mundial está atualmente submerso: a revolta contra essa crise assinalada pela votação britânica só solapará ainda mais o “estado de confiança” dos capitalistas e, mais uma vez, desmentirá todas as afirmações superficiais de uma recuperação iminente. Segundo, este mesmo facto por sua vez encorajará ainda mais outros países a seguirem o exemplo dos britânicos e isto acontecerá mesmo que as dificuldades transicionais da economia britânica se demonstrarem formidáveis. Permanecer fincado numa crise, em suma, doravante será inaceitável para o povo trabalhador. Agora que a primeira pedra foi lançada contra o ninho de vespas, voltar ao status quo ante será impossível. Estamos portanto a testemunhar um descarrilamento do fenómeno da globalização que caracterizou o mundo até agora.

03/Julho/2016

[NT] O Podemos espanhol é tão de “esquerda” quanto o Syriza grego pois ambos os partidos defendem a submissão dos seus países à UE e à NATO, assim como o apoio a agressões imperialistas a outros povos. As últimas eleições espanholas desmentem que o Podemos esteja “à beira do poder”.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/… . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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