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sexta-feira, 29 março, 2024

A crescente desigualdade de rendimento

por Prabhat Patnaik [*]

Foto de Sri Venkatewara Nilayam, na Wikipedia Thomas Piketty e Lucas Chancel acabam de escrever um documento como parte do seu trabalho para o Relatório da desigualdade mundial (World Inequality Report) discutindo o movimento da desigualdade de rendimento na Índia. A sua conclusão é que neste momento a extensão da desigualdade de rendimento indiana é maior do que alguma vez já foi nos últimos cem anos.

As suas estimativas remontam a 1922, quando a Lei do imposto sobre o rendimento (Income Tax Act) foi aplicada na Índia. A fatia dos 1 por cento de topo da população no rendimento total naquela data era cerca de 13 por cento. Ela aumentou para 21por cento no fim da década de 1930 e a seguir caiu para cerca de 6 por cento no princípio da década de 1980, antes de ascender para 22 por cento em 2014, o ano final do estudo.

O que é gritante acerca das descobertas reveladas neste documento é a sincronia quase exacta entre a ruptura nas tendências da desigualdade e a transição do dirigismo para o neoliberalismo. No período entre 1951 e 1980, os 50 por cento da base da população capturavam 28 por cento do aumento no rendimento total ao passo que os 0,1 por cento do topo testemunharam realmente um declínio no seu rendimento. De facto o rendimento dos 50 por cento da base aumentou mais rapidamente ao longo deste período do que a média geral. Entre 1980 e 2014, contudo, os 0,1 por cento do topo capturaram uma fatia mais alta do aumento do rendimento (12 por cento) do que todo os 50 por cento da base (11 por cento).

Naturalmente, dados sobre desigualdade de rendimento sempre podem ser questionados. Para começar não temos inquéritos de rendimento no país; tudo o que temos são inquéritos por amostragem relativos a despesas de consumo – e obter a partir da despesa na distribuição de consumo a distribuição de rendimento é problemático uma vez que não sabemos como as poupanças, que são constituídas pela diferença entre as duas, são distribuídas. Em segundo lugar, em todos os inquéritos por amostragem, os percentis do topo são sempre representados insuficientemente, precisamente porque eles são poucos em números. Os estatísticos portanto fazem toda espécie de suposições acerca de como é distribuído o rendimento dentro do decil do topo para chegar à fatia dos 1 por cento do topo ou dos 0,1 por cento do topo da população. E estas suposições podem sempre ser questionadas.

Portanto não é surpreendente que as estimativas de Piketty-Chancel também tenham sido questionadas por alguns comentadores. Mas não importa como alguém encara os seus números absolutos, as tendências reveladas por eles dificilmente podem ser questionadas, uma vez que mais ou menos o mesmo método de estimação é empregue ao longo do tempo. E esta tendência está inteiramente em conformidade com o que outros investigadores têm estado a dizer e também com o que alguém poderia esperar teoricamente. O Credit Suisse, por exemplo, apresenta dados de distribuição de riqueza. Segundo estes dados, os 1 por cento de topo das famílias na Índia actualmente possuem mais da metade (57 por cento) da riqueza total das famílias e a desigualdade de riqueza na Índia tem estado a aumentar de modo extremamente rápido, na verdade mais rapidamente mesmo do que nos Estados Unidos.

A distribuição da riqueza é invariavelmente mais desigual do que a distribuição do rendimento, porque a classe trabalhadora que não tem riqueza tem no entanto um rendimento. Portanto os números de Piketty-Chanecel para a fatia dos 1 por cento de topo no rendimento não estão de modo algum fora de sincronia com os números do Credit Suisse acerca da sua fatia na riqueza total. (Pela mesma lógica, contudo, eles negam seriamente estimativas que colocam a fatia de riqueza dos 1 por cento do topo em apenas 28 por cento, muito embora estas últimas reconheçam o aumento significativo em desigualdade de riqueza a partir de 1991, quando começaram reformas neoliberais e quando a fatia de riqueza dos 1 por cento do topo era apenas, segundo eles, de 17 por cento).

Uma medida de desigualdade adoptada frequentemente é o coeficiente de Gini o qual mostra a distância entre a distribuição real e uma distribuição ideal caracterizada pela desigualdade absoluta. O problema com o coeficiente de Gini, entretanto, é que ao olhar para a distribuição como um todo ele deixa de fora questões como as fatias dos percentis do topo. Exemplo: mesmo quando a fatia dos 1 por cento do topo podem estar a aumentar, o coeficiente de Gini pode mostrar um declínio na desigualdade se alguma redistribuição está a ocorrer, digamos, do 4º decil de baixo para o decil da base, isto é, dos “pobres” para os “muito pobres”. Piketty e Chancel, consequentemente, não utilizam o coeficiente de Gini mas examinam as fatias dos poucos percentis do topo, as quais são uma medida muito mais útil (especialmente se estamos a falar de poder económico).

Os números de Piketty-Chancel mostram que 1983-84 foi o ano da mais baixa fatia de rendimento para os 1 por cento do topo, após o qual esta fatia começou a ascender. Pode-se recordar que o neoliberalismo fez o seu primeiro aparecimento em torno da mesma época e que o orçamento apresentado em 1985 por Vishwanath Pratap Singh, que era então o ministro das Finanças no governo Rajiv Ganhi, continha passos significativos nesta direcção (contra os quais de facto, naquela época, os partidos de esquerda organizaram uma convenção em Nova Delhi). A associação entre crescimento da desigualdade e a prossecução do neoliberalismo é portanto notavelmente estreita. E, não surpreendentemente, tal crescimento da desigualdade caracterizou quase todos os países do mundo no período da “globalização”, o qual se caracteriza pela prossecução quase universal de políticas neoliberais sob o diktat do capital financeiro internacional.

Os autores, tanto no próprio documento como em entrevistas individuais, apresentam um certo número de razões do porque do aumento da desigualdade de rendimento na Índia neste período, razões que têm a ver com a prossecução do neoliberalismo. O declínio da taxa fiscal sobre o rendimento marginal mais elevado de 98 por cento para 30 por cento, a persistente desigualdade na propriedade da terra e a falta de acesso à educação e à saúde por parte dos pobres são alguns dos pontos levantados pelos autores.

Tudo isto é muito importante. Mas há factores adicionais que precisam ser mencionados aqui, nomeadamente o ataque à pequena produção, incluindo agricultura camponesa, que o neoliberalismo trouxe na sua esteira. Se bem que uma melhoria nas condições do campesinato não beneficie necessariamente os trabalhadores agrícolas de modo automático, uma deterioração nas suas condições invariavelmente é “passada” aos trabalhadores. E além disso, uma vez que no caso de uma tal deterioração camponeses empobrecidos procuram emprego na economia urbana, onde muito poucos empregos adicionais são criados, eles tendem a inchar o exército de trabalho de reserva o que também afecta os salários dos trabalhadores urbanos e portanto a distribuição geral do rendimento urbano.

Por outras palavras, como a Índia rural tem em média um rendimento mais baixo do que a Índia urbana, qualquer ampliação da diferença rural-urbana tem o efeito, tudo o mais constante, de ampliar a desigualdade geral de rendimento (pela medida de Piketty-Chancel). Mas tem também o efeito adicional de ampliar a desigualdade de rendimento dentro do próprio sector urbano. Isto acontece através de um inchaço do exército de trabalho de reserva na economia urbana através da imigração de camponeses empobrecidos para dentro dele. Por ambas as razões, o assalto à pequena produção lançado pelo neoliberalismo constitui um factor importante subjacente ao crescimento da desigualdade de rendimento.

O caso da China, onde, segundo estes autores, antigamente a desigualdade de rendimento estava a ascender rapidamente mas foi revertida no século actual é instrutivo neste contexto. Certamente há diferenças básicas entre as economias indiana e chinesa, mas um importante factor próximo por trás da reversão do crescimento da desigualdade na China foi a política adoptada pelo Partido Comunista Chinês sob a palavra de ordem “Rumo a um mundo rural socialista”. Esta política enquadrou e reverteu alguns dos abusos à agricultura camponesa que a tentativa de industrializar através de um implacável impulso exportador implicara.

A introdução de um imposto sobre a riqueza (o qual, espantosamente, a Índia não tem), o aumento de taxas de tributação sobre o rendimento dos ricos, o assegurar sob a égide do Estado de educação e serviços de saúde de qualidade a todos e, naturalmente, a redistribuição de terra, são sem dúvida alguns dos passos que devem ser tomados para reverter as desigualdades crescentes de rendimento – e isto implica um descartar do neoliberalismo. Mas ainda que reconhecendo isto, devemos reconhecer também, o que os autores não o fazem explicitamente, que o neoliberalismo não é apenas uma opção política que possa ser abandonada à vontade. Ele corresponde a uma etapa do capitalismo em que o capital financeiro internacional adquiriu hegemonia. Ultrapassar o neoliberalismo, portanto, exige uma luta de classe contra esta hegemonia através de uma vasta mobilização de trabalhadores e camponeses.

Entretanto, os autores correctamente enfrentam os apologistas do neoliberalismo, os quais argumentam que tal crescimento da desigualdade de rendimento é essencial para alcançar o alto crescimento do PIB que realmente se verificou em países como a Índia. Isto é absurdo, uma vez que a mais alta taxa de crescimento do rendimento que alguma vez se verificou no capitalismo mundial foi experimentada no período do pós-guerra, durante a chamada “Era dourada do capitalismo”, quando a desigualdade de rendimento esteva realmente a declinar por todo o mundo. Este declínio na desigualdade de rendimento certamente não foi causado pela operação do capitalismo mas sim pelas concessões que o capitalismo foi forçado a fazer diante do assomar da ameaça socialista. Mas isto mostra que o argumento de que a desigualdade crescente de rendimento é essencial para mais alto crescimento é totalmente inconsistente (non sequitur).

01/Outubro/2017

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2017/1001_pd/growing-income-inequality . Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

01/Out/17

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