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Chamado de “última colônia da África”, o Sahara Ocidental é cenário de um dos mais antigos – e menos conhecidos – conflitos do mundo. Após a saída dos colonizadores espanhóis, em 1974, o território foi ocupado pelo Marrocos, provocando uma guerra intermitente e a dispersão da população nômade nativa, os saharauis – que vivem há mais de 40 anos na condição de refugiados e apátridas em sua própria terra. O prometido referendo sobre a autodeterminação desse povo jamais aconteceu.

O drama dos saharauis é tema do documentário de longa-metragem “O deserto do deserto”, de Samir Abujamra e Tito González Garcia, que será exibido pela primeira vez no Festival É Tudo Verdade (com sessões nos dias 12 e 13 de abril em São Paulo e nos dias 13, 14 e 15 no Rio de Janeiro). Nesta entrevista, Samir conta como foi a aventura de filmar no deserto – aventura que quase terminou em tragédia, por conta da explosão de uma mina.

Assista ao trailer do documentário “O deserto do deserto”.

Quando você se interessou pela saga do povo saharaui? E como nasceu o projeto do longa-metragem?

SAMIR ABUJAMRA: Eu estava fazendo um filme como ator em Paris. A produção me colocou em um hotel por quatro ou cinco dias, e eu queria ficar mais tempo, então liguei para o meu amigo Tito Gonzalez, cineasta franco-chileno, e fiquei na casa dele. Um dia, tomando um vinho, ele me mostrou imagens que tinha feito nos campos de refugiados saharauis alguns meses antes. Eu tinha acabado de fazer uma viagem de volta ao mundo e nunca tinha ouvido falar naquele conflito. Quando via o Sahara Ocidental num mapa, achava que era um território de ninguém. Achei as imagens incríveis, o Tito me explicou o que estava acontecendo, e eu pensei: “Vou arrumar dinheiro no Brasil para fazer um filme sobre isso”.

Fale sobre o episódio da mina. De que maneiras ele afetou o documentário e a sua vida?

SAMIR:
 A gente tinha um traçado um roteiro básico para um mês de filmagens, nos campos de refugiados, que ficam na Argélia, e no chamado território livre saharaui, que fica para além do muro que o Marrocos construiu, dividindo o Sahara Ocidental em dois e deixando a pior parte para o povo saharaui. Não queríamos ser protagonistas da história, mas simplesmente mostrar como vivem os refugiados no deserto. A ideia era percorrer de jeep 1.600 quilômetros, saindo dos campos até chegar no Oceano Atlântico, o que representaria uma visão de esperança. Quase ninguém é autorizado a fazer essa viagem, que é muito perigosa: nesse trecho inteiro do deserto existem quatro ou cinco quartéis, 30 mil nômades espalhados em vilarejos e muitas minas enterradas na areia.  Viajamos sete dias em direção ao oceano, e quando estávamos a 800 metros do mar passamos por cima de uma mina antitanque e explodimos. Foi quase um milagre a gente escapar com vida, ninguém entende como ninguém morreu nem ficou aleijado. De qualquer forma, nós quatro naquele carro – eu, Tito, o motorista e um assistente – entramos para as estatísticas mundiais de vítimas de minas. Minutos depois da explosão, ainda atordoado, saquei meu celular e comecei a gravar um depoimento, virando personagem do documentário. Então o episódio afetou o filme, obviamente, porque não imaginávamos que isso ia acontecer. Mas afetou também a minha vida, porque escapar da morte me fez pensar nas coisas de outra maneira. Além disso, tive um problema auditivo por causa da explosão. Além da perda auditiva no ouvido esquerdo, um zumbido vai me acompanhar pelo resto da vida, e passei a ter que usar aparelho auditivo.

Cite outros momentos críticos do processo de filmagem? Dos personagens entrevistados, quais foram os mais marcantes?

SAMIR:
 Os refugiados vivem em condições muito duras. Como nos campos não tem hotel, ficamos hospedados em casas de família, o que foi por si só uma experiência muito marcante. Já no deserto não existe nada, vivemos uma vida de soldado, dormindo em quartéis ou ao relento, num frio de 2 graus. Uma das maiores dificuldades foi a comida. Tínhamos que comer carne de camelo e beber leite de camela e passamos muito mal. O filme tem mais de 40 personagens, mas um deles simboliza muito o drama dos saharauis, um senhor de quase 80 anos chamado Mohamed Brahim “Belgha”, alto, bonito e muito sábio. Ele aparece no início e no fim do documentário, representando um elo perdido entre os nômades do passado e a situação atual dos refugiados. Outro momento que me marcou foi quando crianças me abordaram num canto, pediram: “Filma a gente” e começaram a cantar uma música coreografada. Como não falo árabe nem o dialeto deles, achei que elas estavam cantando uma música infantil, de coelhinho, e quando mais tarde traduzimos a letra vimos que era duríssima, que falava da dor e do sofrimento dos refugiados.

Filme “O deserto do deserto”

O documentário é cheio de elementos simbólicos fortes…

SAMIR: Os elementos simbólicos são muito fortes porque o deserto do Sahara é uma força da natureza, além de ser historicamente importantíssimo. Muita coisa aconteceu lá, colonizações, migrações, os movimentos religiosos, os beduínos nômades… Muita coisa passou pelo norte da África e pelo Oriente Médio. A água – e a falta da água – é um elemento forte. A água, para os nômades, é a coisa mais importante que existe. Os saharauis são chamados de “filhos das nuvens”, porque quando veem nuvens no céu eles vão atrás de chuva. Não existe agricultura, mas uma gota d’água que cai faz nascer alguma coisa, um arbusto, uma acácia, espinhos que já servem para alimentar os camelos. A questão da infância e da velhice também é um elemento muito forte no filme, porque três gerações já nasceram nos campos de refugiados. O documentário tenta fazer um contraponto entre a liberdade de um povo nômade e a sina de viverem confinados, que é muito triste.

Fale sobre a organização social dos saharauis. Como eles lidam com trabalho, dinheiro, família, religião?

SAMIR:
 Eles são 100% muçulmanos praticantes. Em muitos países muçulmanos, a mulher não tem voz, como no próprio Marrocos, onde mulheres são pessoas de segunda classe. Mas, na sociedade nômade, as mulheres têm um status diferente, um papel importante e voz ativa. Nós entrávamos em tendas onde só havia mulheres, e elas nos recebiam muito bem, o que seria impensável no Marrocos. Isso sem falar no colorido das roupas, na beleza das mulheres saharauis. Sobre a organização social, no território livre há uma organização militar, porque a vida é duríssima, eles vivem como soldados, em um território cheio de minas, na parte mais inóspita do deserto. É precisos ser muito forte para estar lá. Há também os nômades que vivem em tendas, com camelos e cabras, sempre indo atrás da água. Já nos campos de refugiados, que ficam dentro da Argélia, funciona uma espécie de país no exílio: a República Árabe Saharaui Democrática. A Argélia os acolheu, evitando assim um genocídio, porque eles seriam dizimados pelo Marrocos. Nos campos, o governo é socialista. Ninguém ganha um salário, as pessoas trabalham e têm escola, posto de saúde, hospital, mas tudo muito precário. O passaporte deles é de refugiados, com nacionalidade apátrida. Não existe sistema financeiro, não tem banco, um ou outro monta um pequeno negócio.

Depois do fim das filmagens, como a situação evoluiu?

SAMIR:
 A gente terminou de filmar em fevereiro de 2014, de lá para cá algumas coisas aconteceram. Há dois meses o secretário-geral da ONU esteve nos campos de refugiados, viu a situação real de opressão sofrida e fez um discurso afirmando que era uma vergonha para a ONU essa questão estar há 40 anos sem solução.

Como você equacionou financeiramente a realização do projeto?

SAMIR:
 Dois dias depois de ver o material do Tito, já no aeroporto para voltar ao Brasil, postei no Facebook: “Alguém aí tem 30 mil euros para investir num documentário internacional? Desliguei o celular, entrei no avião e, já no Rio de Janeiro, vi que um cara tinha respondido: “Estou interessado.” Rapidamente outras pessoas entraram com dinheiro, e em quatro meses estávamos filmando. O trabalho de edição foi complicado, demorou dois anos, foram entrando outros recursos e chegamos a dez produtores associados, que entraram com “dinheiro bom”, sem nenhuma lei de incentivo. No final entrou também o Canal Brasil, já na etapa de finalização, como coprodutor, licenciando o filme para exibição e entrando com um aporte financeiro para a gente concluir o filme.

Em que medida os saharauis conseguem preservar sua cultura diante das pressões da ocidentalização?

SAMIR:
 A pressão maior contra eles é a guerra, a ameaça do Marrocos, a conjuntura internacional que já dura 40 anos. A ocidentalização é relativa. Eles usam a tecnologia a favor deles, como placas solares que geram energia e a própria internet. Como o conflito é praticamente desconhecido, eles tentam usar a internet para espalhar a informação. A informação é a única coisa que pode alterar a situação no Sahara Ocidental. Na África do Sul, Mandela ficou preso 27 anos, o apartheid comendo solto, e ninguém falava nada, ninguém sabia quem era Mandela. Quando a sua história veio à tona, e as pessoas se informaram sobre o que acontecia, a pressão internacional mudou tudo, com embargo econômico, o fim do apartheid e Mandela virando presidente. Mas hoje existe outra preocupação: que o território dos saharauis acabe sendo ocupado por extremistas, como o Estado Islâmico. E os jovens saharauis querem a guerra com o Marrocos, por mais terrível que seja, porque eles acham que a política e a diplomacia não estão dando certo. É uma situação trágica, muito injusta e difícil, então o que queremos com o filme é divulgar informações sobre esse conflito, praticamente ignorado, até mesmo por jornalistas e pessoas bem informadas e cultas. Alguma coisa precisa acontecer, senão os saharauis vão continuar vivendo precariamente em campos de refugiados por mais 40 ou 80 anos.