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sexta-feira, 29 março, 2024

Doutrina da Fé é a agência política de sabotagem contra o pontificado de Francisco

O sacerdote e teólogo polonês Krzysztof Charamsa, ao lado do seu companheiro, assume homossexualidade e sai do Vaticano.
Religión Digital/Adital

José Manuel Vidal

O sacerdote e teólogo polonês Krzysztof Charamsa acaba de protagonizar uma das ‘saídas do armário’ mais clamorosas da história do Vaticano. Radicado em Barcelona, Espanha, realiza, nesta entrevista exclusiva à RD, uma duríssima alegação contra a Congregação para a Doutrina da Fé e seu Prefeito, o cardeal [alemão Ludwig] Müller, ao qual acusa de homofobia e de tentar “sabotar o pontificado de Francisco”.

¿Foi feliz durante seus anos de sacerdócio?

Sim, eu sempre fui um padre feliz. Sinto-me feliz servindo as pessoas, escutando e aconselhando as pessoas. Estou feliz quando comunico a palavra e a graça de Deus. Mas, ao mesmo tempo, não me sentia feliz pela negação imposta pela Igreja à minha natural orientação sexual. Estes dois sentimentos no sacerdócio entravam em conflito. Ao final, prevaleceu a infelicidade, causada pela homofobia da Igreja. Compreendi que, para ser sacerdote feliz, devo dizer à minha Igreja que está paralisada pela homofobia, e isto não faz ninguém feliz.

Sim, à luz dos meus estudos sobre o celibato, hoje, estou convencido de que a única disciplina que se poderia aceitar é a disciplina do celibato opcional, como a encontramos nas igrejas católicas orientais, onde os candidatos a padres podem, realmente, decidir se querem viver como celibatários ou como casados. Há, no entanto, outro problema. Penso que, hoje em dia, se deve também discutir e revisar o valor humano do celibato. O celibato obrigatório, imposto na igreja latina, sem possibilidade de decidir, é, sem dúvida, uma prática desumana. Devemos enfrentar a disciplina do celibato com o estado das ciências modernas sobre o homem e com a experiência dramática de muitos sacerdotes. A Igreja, muitas vezes, esconde uma dupla vida em sua corporação do clero.¿É partidário do celibato opcional na Igreja Católica? Por que?

Chamam você de ‘traidor’, por ter saído do armário e quebrado seu compromisso celibatário?

Seria um traidor se continuasse estando no armário. Só assim seria um traidor de Deus e da humanidade. Seria um mentiroso. Eu não traí ninguém. Eu me libertei da paranóia homofóbica da igreja, que é irracional e absurda, e incapaz de refletir, porque está cheia de um doutrinamento ideológico. Pessoalmente, vejo que quem trai é a Igreja, como comunidade de fiéis e como hierarquia, porque não é capaz de revisar uma posição que já não pode continuar defendendo. Esta traição é muito patente na Congregação para a Doutrina da Fé e no Vaticano em geral. Traição é também a dupla vida de uma parte do clero. A dupla vida, para mim, não significa apenas ter um companheiro, homem ou mulher, que é uma realidade muito saudável e recomendável para um padre. A dupla vida é também masturbar-se regularmente ou ser dependente da masturbação, como são muitos padres, e, ao mesmo tempo, lutar contra a masturbação, que faz parte de uma sã vida sexual em casal.

A Igreja prega misericórdia, mas continua perseguindo os homossexuais?

Sim, há uma verdadeera perseguição por parte da Igreja Católica, tanto das pessoas como da comunidade LGBTI em geral. É a perseguição das minorias sexuais, que não pertencem e não podem pertencer à maioria heterossexual. Trata-se de um projeto ideológico da Igreja. Minha Igreja se permite afirmar que deve lutar contra os gays da mesma forma como lutava contra o nazismo. Nos comparam aos nazistas, aos inimigos da humanidade. Esta afirmação saiu da boca do cardeal africano [Robert] Sarah – de Guiné Equatorial – justamente, no meio do Sínodo, que, em lugar disso, deveria pensar com misericórdia sobre as famílias. A Igreja está obcecada com a homossexualidade, assim como com a sexualidade humana em geral.

Desgraçadamente, neste momento da Igreja, não há pessoas capazes de abrirem uma discussão séria, livre de toda ideologia ditatorial. O nível intelectual e espiritual dos pastores, em geral, não é muito alto. Assim, faltam interlocutores com os quais se poderia confrontar na Igreja. Esta é a minha experiência na Congregação para a Doutrina da Fé: um frio e cego doutrinamento, um legalismo automático, cheio de fariseísmo insensível. Com quem se poderia discutir, na Igreja, as questões humanas se a Igreja permite as palavras de Sarah? Ele deveria ser denunciado por difamação de um grupo social. A Congregação para a Doutrina da Fé pensa como Sarah. Estão obcecados pela homossexualidade.

Há alguns dias, o cardeal [alemão Walter] Kasper dizia que “o homossexual nasce”. Era a primeira vez que eu ouvia um hierarca da Igreja. E você?

Sim, é verdade, creio que é a primeira vez. O cardeal Kasper é uma das poucas pessoas que pensa na Igreja. Não compartilho de sua posição sobre o julgamento moral em relação aos atos homossexuais, realizados por pessoas homossexuais, seguindo sua própria natureza. Parece-me que ele, por um lado, sustenta que se nasce homossexual, mas, ao mesmo tempo, exclui essas pessoas da possibilidade de amar, possibilidade reservada apenas às criaturas heterossexuais. É contraditório. Em outros termos, se é verdade que “se nasce homossexual”, como ele diz, então, os católicos têm um problema com a questão homossexual. Devem refletir, de novo, sobre todo o tema da orientação sexual e, depois, revisar a doutrina moral à luz desta reflexão.

Não obstante essa frase, para mim, parece que o cardeal Kasper segue a desafortunada teoria da complementariedade homem-mulher. Trata-se de uma verdadeira construção mental católica, que já foi provada como teoricamente frágil, para não dizer falsa. Desgraçadamente, o termo “complementariedade” se converteu em um slogan com o qual a Igreja quer eliminar a discussão sobre pessoas homossexuais como criaturas de Deus em vista do amor. Assim, a Igreja promove também uma falsa imagem homofóbica das pessoas homossexuais, como naturalmente incapazes de amar. Assim promove também o ódio na mentalidade das pessoas contra as pessoas LGBTI, que são apresentadas como anormais. Trata-se de uma posição ideológica de uma igreja que tem medo de pensar. Estou seguro de que isto passará e, no futuro, a Igreja pedirá perdão por este atraso. Este tipo de erros se repete na história da Igreja, continuamente.

radiovaticana
Cardeal alemão Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, é acusado por Charamsa de ser obcecado pelo tema da homossexualidade.

Voltando ao cardeal Kasper: ele é um crente que pensa, com o qual se pode discutir. Há também outros como ele: como o cardeal [tcheco Christoph] Schönborn, o cardeal [alemão Reinhard] Marx, o monsenhor [italiano Bruno] Forte o monsenhor [belga Johan] Bonny, para nomear alguns, e sem esquecer o Papa Francisco. São homens de Deus e da Igreja, sensíveis, crentes, capazes de conhecerem a humanidade e de dialogarem com ela. Mas a maioria está obcecada, incapaz de pensar e de amar, como o cardeal Sarah. A estigmatização promovida pela maioria é uma arma.

A espiritualidade e a sensibilidade atraem os gays para o altar? Existem mais homossexuais na Igreja do que em outras instâncias sociais?

Pessoalmente, estou seguro de que é assim. Muitas vezes, no passado, ser padre, para um gay, era a maneira de esconder sua homossexualidade e se realizar socialmente. Hoje, provavelmente, essa razão funciona apenas em sociedades homofóbicas e retrógradas. Imagino que, na minha pátria, a Polônia, ainda funciona assim. Penso que, hoje em dia, é muito mais frequente que um gay, com sua sensibilidade e sau abertura ao transcendente e ao divino, queira ser padre.

E, na Cúria, há muitos gays? É realidade o lobby gay vaticano de que tanto se fala?

Neste campo, também posso falar apenas da minha experiência. Não temos estudos sobre a presença de pessoas homossexuais no clero, porque é um tabu, um tema sobre o qual não se deve falar. Na Cúria, há muitos gays. Muitos deles são bons padres, se não são homofóbicos, se não pensam apenas em sua carreira, se não se preocupam apenas com o dinheiro e o poder. O problema aparece quando os gays são homofóbicos interiorizados. No clero católico, há muitos homossexuais que, reprimidos pela sua própria orientação, odeiam os que são gays como eles.

Outro tema é o lobby gay, que eu não conheço. Li algo sobre isso na Itália, mas não tive nenhuma experiência. Pode ser que exista esse lobby, como existe o lobby italiano ou polonês no Vaticano. O Vaticano, o coração da Igreja, é uma mescla de lutas pelo poder, a política e o dinheiro. Penso também que o Vaticano é um lobby em nível italiano e internacional, que impõe coisas que jamais estudou seriamente.

A Doutrina da Fé é um dicastério especialmente homofóbico? E seu chefe máximo no dicastério, o cardeal Müller?

Sim, a Congregação para a Doutrina da Fé é o coração de uma homofobia paranóica e irracional. Nela, não há possibilidade de conhecimento nem de diálogo. Funciona por estereótipos. Eu tinha a impressão de que nós, na Congregação, não promovemos a fé em Deus, não nos ocupamos de cristologia ou mariologia, só lutamos contra os gays e demais minorias sexuais. É uma obsessão. Esta é a nossa verdadeira fé: a paranóia anti-gay. Nada mais. É nosso tema preferido. Há reuniões nas quais de cada três casos que tratamos, dois são contra gays. Inventamos um inimigo imaginário e lutamos com todas as nossas forças contra ele. Chamamos de “nossa guerra contra o gênero”. Lá, não se pode discutir, pensamos que esse gênero apenas promove mudanças de sexo. Esse é o nível de paranóia que reina na Congregação.

O cardeal Müller promove toda esta ignorância, este extremismo, esta obsessão entre os oficiais, sem nenhum tipo de razão. No lugar de promover estudos, a Congregação é a agência política de sabotagem contra o pontificado do Papa Francisco e sua discussão sinodal. É a agência que luta contra o gênero, o que tampouco sabe definir. O realmente importante é usar a palavra gênero de uma forma que assuste as pessoas, não importa que não se tenha lido nem um só livro sobre estudos de gênero. A homofobia e a misoginia (a verdadeira feminofobia, um complexo ou ódio contra a mulher) obsessivas são um drama para esta Congregação, cujos membros nem todos são heterossexuais. Como em todas as partes, há homossexuais. A realidade é que a Congregação odeia os gays, mesmo tendo dentro pessoas das quais se sabe que são homossexuais.

A Doutrina da Fé é uma das principais peças da resistência na Cúria à primavera de Francisco?

Sem nenhuma dúvida. A Congregação vive seu periodo mais obscuro. O que mais importa é manter oculto o nosso tabu: a homossexualidade e a sexualidade em geral. Com a primavera de Francisco, a Congregação tem um novo inimigo. Juntamente com os gays, há o Papa Francisco. Juntamente com a homofobia aparece uma “Francisco-fobia”. O desprezo pelo Papa na Congregação é enorme. Pelas coisas que ouvi sobre o Papa Francisco na Congregação, esta deveria ser denunciada por ofender o primado de Pedro. No passado, nós destruímos carreiras de teólogos que refletiam com respeito e inteligência sobre novas formas de exercício do primado. Agora, a Congregación está contra o Papa e seu primado, de uma maneira irracional.

Reprodução
Cardeal Robert Sarah, da Guiné Equatorial, prefeito daCongregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, comparou homossexuais e nazistas.

Várias pessoas que trabalham na Congregação são simplesmente fundamentalistas e seu nível intelectual não é tão alto como sua presunção de serem “salvadores deste mundo delinquente”. Dentro, não há nenhuma possibilidade de discussão. Pessoalmente, não tenho nenhuma dúvida de que o prefeito da Congregação, de uma forma digna e com honra, deveria demitir, depois do meu “coming out”. Para salvar a situação, a Congregação deveria ser fezhada pelo Papa, para começar sua renovação quanto a métodos de promoção da fé na Igreja. No dia de hoje, continua sendo a Inquisição. Está vazia de argumentos racionais e cheia de paranóicas emoções, como as expressadas abertamente pelo cardeal Sarah.

Por que não falou com o Papa, antes de divulgar, publicamente, sua situação?

Falei com todas aquelas pessoas com as quais se podia falar. Falei com todos aqueles que poderiam entender a situação desumana de hipocrisia e falsidade da Igreja de Roma, que não são muitos. A situação atual é um escândalo institucionalizado. Mais do que divulgar publicamente a minha situação, denunciei a situação da Igreja na qual vivi. Isto é muito diferente. Graças a Deus já não é mais meu problema. Me libertei do escândalo dessa Igreja que denunciei publicamente. Queria ajudar a que a Igreja despertasse, oferecendo o testemunho da minha experiência no Vaticano. Alguém deveria dizer isso claramente.

Não lhe parece que o Vaticano reagiu, rápida e drasticamente, contra você, enquanto não faz a mesma coisa com os sacerdotes pedófilos?

A reação foi automática. O automatismo legalista e formalista é a alma da Igreja Católica ante aquele que lhe diz a verdade, apesar de que o Papa Francisco, continuamente, fale contra os formalismos legalistas.

É certo também que muitos casos de padres pedófilos foram e são tratados de um modo distinto, não tão drástico. A pedofilia é uma vergonha do clero católico. Está relacionada com a imaturidade sexual dos seus membros. Não está influenciada pelo mundo, tal como afirma, obsessivamente, a Igreja. É o resultado de uma obsessão provocada por uma sexualidade reprimida, não aceita, rechaçada.

Também é verdade que, em vários níveis da Igreja, a pedofilia continúu sendo protegida, para salvar sua imagem e não indenizar pelos danos causados. Vou dar um exemplo. No fim do verão passado, na prisão do Vaticano, morreu o núncio polonês, o arcebispo [Jósef] Wesolowski, julgado pela Congregação como pedófilo. Este homem teve um enterro que durou 10 dias, entre o Vaticano e a Polônia. 10 dias de enterro de um prisioneiro que já foi julgado por um tribunal eclesiástico por abusos pedófilos. Este enterro começou com uma missa celebrada pelos mais próximos colaboradores do Papa e terminou ao cabo de 10 dias, na Polônia, com uma leitura de uma carta na qual se dizia que as acusações de sua pedofilia eram só invenções da máfia da República Dominicana. O Vaticano permitiu todo esse espetáculo, no lugar de pensar em como idemnizar imediatamente as vítimas desse bispo pedófilo. Vendo tudo isso, se pode chegar à conclusão de que existe um lobby pedófilo no Vaticano. Sim, muitos padres e bispos pedófilos têm um tratamento especial e muitos continuam livres de qualquer pena.

A esta luz a reação do Vaticano a um sacerdote gay que diz a verdade é um automatismo vergonhoso. Mas esta é a lógica da Igreja: tudo deve permanecer escondido “pelo bem da Igreja”. Enquanto esteja escondido, não acontece nada. Para a Igreja, “o demônio” é o padre que diz a verdade, que sai à luz, o que sai do armário.

Vai continuar sendo sacerdote, vai pedir a secularização ou vão impor a você?

Sou e me sinto sacerdote. Hoje, sou melhor sacerdote do que antes. Ao contrário, sou eu quem vai pedir à Igreja que abra os olhos.

Tem pensado em escrever algum livro sobre suas vivências no Vaticano?

Sim, estou convencido de que é meu dever explicar mais amplamente minha experiência na Igreja, e o farei pelo bem da própria Igreja, que deve converter-se e pedir desculpas por seus escândalos institucionais, por seus atrasos, por sua paranóia irracional da homofobia. Todo aquele que vê e experimenta tem o dever de despertar a Igreja, a qual já superou todo o limite suportável.

Se o Papa pedisse pessoalmente, deixaria seu companheiro e voltaria ao Vaticano?

Não, não dejaria meu companheiro porque o amo e porque não há razões doutrinárias para fazer isso. Ter um par, seja homem ou mulher, para um sacerdote, não vai contra a sua fé, não vai contra a doutrina da nossa fé. Ao contrário, é a Igreja e o Papa que deveriam começar a refletir seriamente sobre a desumana disciplina do celibato obrigatório, e sua obsessão pela homossexualidade e a sexualidade humana em geral.

Voltar ao Vaticano? Não, não voltaria. Deveria ser um masoquista uma pessoa que busca sofrimento e ofensa da sua própria identidade. Eu não sou masoquista. O Vaticano é um dos lugares menos santos que conheci na minha vida. Eu quero viver feliz, quero ser santo, o que significa ser feliz e viver à luz da vontade de Deus e da dignidade do homem. No Vaticano, a maior parte das pessoas não é feliz. É um lugar que necessita de uma conversão espiritual e mental. Necessita do ar de Deus, ar que falta lá.

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