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terça-feira, 19 março, 2024

ESTADOS UNIDOS E BRASIL – O QUE ESTÁ POR TRÁS DA LAVA JATO

Divulgação

Os setores chave em disputa (que estão agora vulneráveis) como o petróleo, a construção civil e a produção de carne, são a coluna vertebral da economia nacional

O Brasil enfrenta hoje uma das crises institucionais e políticas mais contundentes das últimas décadas. A mídia hegemônica garante que a corrupção constitui o miolo desta crise. Porém, considerando a dimensão da Lava Jato, parece que a judicialização da política tem um claro propósito (nem sempre evidente à opinião pública): condenar a “ineficiência” do que é público, a incapacidade do Estado e a corrupção dos políticos, para assim justificar o retorno à doutrina neoliberal.

Por Silvina M. Romano

Algumas desconfianças sobre o modo como se apresenta a operação Lava Jato obedecem à opinião dos “especialistas” da imprensa e think tanks dos Estados Unidos, que fazem abundantes análises sustentados na sorte da moral liberal. Sustentam, por exemplo, que o caso Lava Jato está ajudando a mudar “a cultura da impunidade” que caracteriza o Brasil. Segundo eles, “a pressão popular é muito forte no Brasil e as pessoas não podem suportar a corrupção”. O curioso é que não dão o mesmo peso à pressão das pessoas nas ruas contra as medidas de ajuste neoliberal que vem sendo implementadas pelo governo Temer. Estas medidas antipopulares são nada menos que necessárias “graças” à baixa popularidade de Temer, por isso é o único capaz e levar a cabo estas reformas “fundamentais” para que funcione a economia brasileira. [1]

Por outro lado, o que desde uma perspectiva ligada estritamente aos atributos estáticos seria considerado ingerência, é retrucado com um discurso no qual os Estados Unidos parecem como salvador do Brasil porque todo o processo da Lava Jato é feito em coordenação com (e assessoria previa de) o Departamento de Justiça do país do Norte – situação que deve ser destacada no processo de reformas judiciais em toda a América Latina – financiada e impulsionada em plena era neoliberal pelo Bid (Banco Internacional de Desenvolvimento), Usaid (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, da sigla em inglês) e o Banco Mundial [2]. Um dado recente é que um dos testemunhos, o que insistiu na ligação de Lula com o caso, teve que declarar diretamente, e sem motivo específico, diante do Departamento de Justiça estadunidense, evidenciando o controle que exerce o governo norte-americano sobre os processos no Brasil [3].

Mas a judicialização da política tem objetivos materiais claros. Sem a necessidade de se aprofundar em demasia, é possível ver que a “árvore” da corrupção parecia estar cobrindo um bosque: o desmonte da estrutura econômica brasileira. Tal como apontam alguns especialistas, os setores chave desta disputa (que estão agora vulneráveis) como o petróleo, a construção civil e a produção de carne, são a coluna vertebral da economia nacional [4]. Um fato que demonstra isso é que, no momento de pico da crise institucional, no começo de 2016, a oposição ao PT apresentou projetos de lei para retirar o monopólio operativo da Petrobras sobre as reservas de hidrocarbonetos de grande envergadura [5] (objetivo que conquistaram logo depois do golpe de Dilma), vinculando de modo direto e indireto a Lava Jato com interesses de negócios e geopolíticos do setor privado e o governo dos Estados Unidos.

Estados Unidos e o rumo do Brasil [6]

Em 2013, Edward Snowden publicou documentos filtrados da Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA), que mostram a vigilância permanente sobre o governo brasileiro [7]. O Brasil aparece nestes documentos como uma insígnia de “inimigo” não só dos Estados Unidos, mas também aos olhos da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) – devido, entre outras coisas, à aproximação com a China. A partir da afirmação destes documentos, parece claro que uma das motivações de espionagem foi a Petrobras e o papel do Brasil no mercado mundial petroleiro. Isto não é um segredo, pois em 2012 a Agência de Informação sobre Energia dos EUA destacava a crucial descoberta de reservas de petróleo no Brasil, os depósitos na plataforma submarina de pré-sal que poderiam transformar o país em um dos maiores produtores do mundo [8].

De fato, quando o governo brasileiro se inteirou da operação de espionagem, os Estados Unidos argumentaram que o objetivo era “comercial” devido à descoberta do pré-sal. O interessante é que, além das mencionadas agências de governo dos EUA, também participaram destas operações o Departamento de Estado (deixando rastro através dos grampos com seus diplomatas no Brasil). Em um destes grampos de 2009, José Serra (PSDB), à época candidato à presidência e depois do golpe chanceler de Temer, assegurava que ao chegar à presidência mudaria as leis que regulamentavam o setor petroleiro.

Nos documentos também se percebe o lobby exercido pelas petroleiras estadunidenses, que em seus comunicados ao Departamento de Estado advertiam sobre o difícil clima para investir em negócios no Brasil: “enquanto fazer negócios no Brasil é mais difícil que operar na Bolívia, nos disseram que, em muitos aspectos as condições para investir são piores que na Venezuela”, detalhava um grampo de 2006.

Retomando nomes concretos, se percebe a divergência da Chevron, empresa que apesar de estar como partner da Petrobras, considerava que a estatal “abusava” de seus privilégios no setor. Outro documento apresenta informações sobre a reunião do então embaixador norte-americano no Brasil, Clifford Sobel (2006 – 2009) e CEOs das principais transnacionais de petróleo, entre elas Chevron, Exxon Mobil, Devon Energy, Anadarko e outras, dando conta do envolvimento do governo estadunidense nesta “questão” do petróleo brasileiro. Nos documentos sobre a situação do Brasil é possível ler: “a estratégia agora é recrutar novos companheiros para trabalhar no Senado, para aprovar emendas essenciais à lei”.

A profecia auto cumprida: a mudança de rumo da Petrobras

A Petrobras é a empresa brasileira de maior atuação, é responsável pela investigação, exploração, transformação e distribuição de um recurso estratégico por excelência, o petróleo. Além disso, gerencia a maioria das patentes brasileiras registradas, e tem um papel protagonista na construção naval e no desenvolvimento e fabricação de maquinaria pesada. Portanto, trata-se de um instrumento estratégico para a economia e o desenvolvimento brasileiro. No ano de 2010, no denominado pré-sal, localizado em águas profundas do Oceano Atlântico, descobriram reservas de petróleo e gás [10] que em 2013 foram estimadas em mais de 40 milhões de barris e de prováveis reservas de 176 bilhões ainda não descobertos. Além disso, segundo os cálculos, o custo de extração estaria muito abaixo do custo médio da produção mundial [11]. Logo após a descoberta, o monopólio da Petrobras começou a ser cada vez mais atacado pelas transnacionais petroleiras.

Em um relatório de negócios de petróleo de setembro de 2016, se adverte que a Petrobras é “a empresa mais endividada do mundo”, e está reorganizando suas energias para explorar a área do pré-sal, apesar de ter recortado o âmbito de atuação ao mínimo. O problema – para as grandes petroleiras – é que tais limitações não podem ser superadas, pois a Petrobras tem o monopólio destes espaços, ao atuar como operador, situação que – advertiram com alívio – seria revertida no Senado para retirar essa restrição de ação a outros operadores e “aliviar” a pressão da estatal brasileira [12]. O certo é que a Petrobras nunca entrou em falência e ainda com dificuldades, seguiu explorando os campos de pré-sal.

Com o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff (processo em que o governo dos Estados Unidos mostrou um suspeito “perfil baixo”) [13], as companhias conseguiram acelerar a disputa para as tão apreciadas reservas de petróleo. Passados dois meses do golpe, a Câmara de Deputados aprovou uma reforma à lei que exonera a Petrobras da obrigação de manter uma participação mínima de 30% na exploração do pré-sal [14], permitindo o acesso direto às transnacionais para explorar as reservas de petróleo do Brasil [15]. Um dos que impulsionaram esta medida foi ninguém menos que José Serra, seguindo com um compromisso previamente firmado, tal como se percebe em documentos abertos pelo Wikileaks.


José Serra, principal responsável pela entrega do petróleo nacional
Assim, com a Petrobrás já não sendo detentora do monopólio sobre o petróleo brasileiro, o primeiro negócio de abertura foi feito com a empresa francesa Total SA para vender ativos por 2,2 milhões de dólares. Inclui a participação nos campos de petróleo e em estações de energia térmica. Em troca, a Petrobras recebeu em um primeiro momento 1,6 milhões de dólares, além de poder optar participar da produção em campos de petróleo do Golfo do México, atualmente sob a propriedade da Total e Exxon Mobil [16]. Um dado a ser destacado é que a mudança na legislação brasileira gerou expectativas na Exxon Mobil, a única transnacional estadunidense que não tinha presença no Brasil e que já está planejando seus próximos passos para ter acesso às reservas off-shore do país. Outra das empresas que também se beneficiou foi a estatal de petróleo da Noruega, que adquiriu Carcará por 2,5 milhões de dólares [17].

Através da perspectiva do mundo dos negócios (leia-se, os setores interessados na abertura do mercado do petróleo), como resultado da Lava Jato, a Petrobras perdeu investimentos em 2015 e será “difícil” sair desta situação. Asseguram que com a nova lei, a estatal “começará a repercutir”, ainda que prevejam tempos delicados devido às possíveis mudanças de rumo na decisão da Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) de recortar a produção de petróleo – suspeita infundada porque a Arábia Saudita (líder da organização) parece concordar não só em manter, mas em ampliar os recortes da produção nos próximos meses [18]. Mas o que mais preocupa os empresários brasileiros são as eleições do próximo ano: “esperamos que Lula não vença”, exclamam [19].

Por outro lado, a partir da perspectiva dos trabalhadores vinculados ao setor petroleiro, está clara que a mudança da lei (junto com a Lava Jato) é uma estratégia muito bem elaborada com o objetivo de privatizar (coisa que já está sendo feita) o setor para que as multinacionais tenham acesso às reservas de petróleo do Brasil em um momento de rapina por recursos estratégicos a nível mundial. Para legitimar esta venda (de petróleo e soberania) é fundamental mostra a ineficiência e incapacidade da Petrobras, como empresa estatal, para assumir a exploração dos recursos [20].

Dos negócios à geopolítica

Em 2015, apesar das críticas ao governo de Dilma Rousseff, o Departamento de Comércio dos EUA assegurava que “o Brasil continua sendo muito atrativo para as empresas estadunidenses”. Estava claro que o Brasil era o principal sócio comercial dos Estados Unidos, sendo que em 2014 o intercâmbio entre ambos os países alcançou 37 bilhões de dólares, além de ser a sétima economia do mundo e que por isso (apesar da crise) segue sendo “um mercado fantástico”. No mesmo documento se afirma que ambos os governos assinaram em 2010 um Acordo de Cooperação em Defesa que Dilma enviou para a ratificação do Congresso. Isto é sugestivo, pois no mesmo texto se esclarece aos empresários que uma das áreas prioritárias para fazer negócio é a da defesa [22].

Com a posse de Temer, se estreitaram os laços com as Forças Armadas dos Estados Unidos em virtude deste papel privilegiado do setor de defesa (como “nicho de mercado” e obviamente em termos geopolíticos). Em março de 2017, o Exército dos EUA inaugurou um centro de tecnologia em São Paulo para “se associar com o Brasil em projetos de investigação focados na inovação” – similar às bases militares que o país planeja instalar na Argentina para “investigação científica” [23]. O Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA firmaram um convênio para Intercâmbio de Informações em Investigação e Desenvolvimento, o Miea (Master Information Exchange Agreement).

Diante destes fatos e considerando a importância geoestratégica e geopolítica do Brasil, preocupa uma informação sobre o convite das Forças Armadas brasileiras a tropas dos Estados Unidos para participar de um exercício militar “inédito” na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. O exercício se denomina “Operação América Unida”, inspirado em uma atividade similar que foi realizada pela Otan na Hungria em 2015 (ocasião em que o Brasil participou como observador). Logo depois deste exercício, a Otan abriu uma base na Hungria. Além disso, vale recordar que em 2013 a Colômbia firmou um acordo de cooperação com a Otan [24]. Isso não deve passar despercebido nas atuais circunstâncias de escaladas de conflito na Venezuela (cujo principal e indiscutível motivo são as reservas de petróleo), que se insere em um esquema de provocação e/ou manutenção “das situações bélicas” por parte dos EUA em um cenário de rapina pela apropriação de recursos estratégicos.

Notas

1 https://www.ft.com/content/8edf5b2c-c868-11e6-9043-7e34c07b46ef
2 http://www.celag.org/lawfare-la-judicializacion-de-la-politica-en-america-latina/
3 https://www.brasil247.com/pt/247/poder/297111/Delc%C3%ADdio-diz-que-foi-interrogado-pelo-Departamento-de-Justiça-dos-EUA.htm
4 http://www.celag.org/el-impacto-del-lava-jato-en-el-capitalismo-brasileno/
5 https://mundo.sputniknews.com/americalatina/201602171056856274-brasil-petrobras-reserva/
6 Esta sección está realizada en base a información tomada de https://wikileaks.org/Nos-bastidores-o-lobby-pelo-pre.html ; http://www.brasilwire.com/snowden-wikileaks-brasil/
7 Estes documentos dão conta do entretenimento de agentes para ter acesso e espiar as redes internas de empresas, governos e instituições financeiras, se intrometer em redes para proteger informação destas instituições.
8 Até 1997 a Petrobras tinha o monopólio da produção de petróleo, ano em que o governo decidiu abrir o setor à concorrência, sendo a Shell a primeira transnacional a produzir petróleo no país. se somaram logo a Chevron, Repsol, BP, Anadarko, El Paso, Galp Energia, Statoil, BG Group, Sinopec, ONGC and TNK-BO.
9 http://www.as-coa.org/speakers/ambassador-clifford-sobel
10 http://www.elmundo.es/america/2010/10/29/brasil/1288378788.html
11 http://www.resumenlatinoamericano.org/2016/03/12/petrobras-y-el-presal-brasileno-el-centro-de-la-disputa/
12 http://www.offshore-mag.com/articles/print/volume-76/issue-9/deepwater-update/deepwater-development-in-golden-triangle-down-but-not-out.html
13 http://www.celag.org/estados-unidos-y-el-perfil-bajo-sobre-brasil-por-silvina-m-romano/
14 http://www.telesurtv.net/news/Congreso-brasileno-aprobo-reforma-sobre-explotacion-del-presal-20161110-0014.html
15 http://www.brasilwire.com/snowden-wikileaks-brasil/
16 http://www.nasdaq.com/article/oil-gas-stock-roundup-chevrons-asset-sale-petrobras-total-deal-and-more-cm726369
17 http://www.brasilwire.com/snowden-wikileaks-brasil/
18 http://www.preciopetroleo.net/opep-reunion-mayo-2017.html
19 https://www.forbes.com/sites/kenrapoza/2017/05/16/these-guys-are-bullish-on-beleaguered-brazil-oil-firm-petrobras/#2ae280854f33
20 http://www.mdzol.com/opinion/672089-brasil-es-el-petroleo-la-verdadera-razon-de-la-lucha-por-el-poder/
21 https://www.washingtonpost.com/news/energy-environment/wp/2016/12/13/trump-taps-former-texas-gov-rick-perry-to-head-energy-department-he-once-vowed-to-abolish/?utm_term=.afcc6358fb01
22 https://www.commerce.gov/news/blog/2015/06/brazil-continues-be-attractive-us-companies-says-andrews
23 http://tn.com.ar/tnylagente/denuncias/macri-abre-las-puertas-eeuu-para-instalar-bases-militares_689656
24 http://www.telesurtv.net/analisis/Cuatro-anos-del-acuerdo-entre-la-OTAN-y-Colombia-20150305-0034.html

*Silvina M. Romano é doutora em Ciência Política pela Universidade Nacional de Córdoba

Tradução: Mariana Serafini

Fonte: Site do Vermelho

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