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quinta-feira, 28 março, 2024

EUA: Quatro anos de massiva campanha de ódio

Memorial improvisado às vítimas do massacre de El Paso; entre elas, a professora mexicana Elsa Mendoza

Após atentado contra mexicanos em El Paso, Trump disse que não há lugar para intolerância nos EUA e defendeu que o racismo e a supremacia branca sejam condenados. Mas ele deveria ser o primeiro a entender essa mensagem.

DW

Elsa Mendoza, de 59 anos, foi professora e diretora de uma escola para crianças com necessidades especiais em Ciudad Juárez, em Chihuahua, no México. Em 3 de agosto, ao lado de seu marido e um de seus filhos, ela cruzou a fronteira entre Juárez e El Paso, no Texas, para visitar familiares, como fazia habitualmente.

Por volta das 11 horas da manhã, ela estava no Walmart do shopping Cielo Vista Mall quando o cidadão americano Patrick Crusius, de 21 anos, abriu fogo contra a multidão com a intenção de “matar mexicanos”.

O corpo de Elsa voltou a Ciudad Juárez na semana passada, em um carro fúnebre. Ela foi uma das oito vítimas de nacionalidade mexicana do massacre, que deixou um total de 22 mortos e outros 24 feridos. Junto com ela, morreram Sarita Regalado e seu marido, Adolfo Cerros, María Eugenia Legarreta, Jorge Calvillo, Gloria Irma Márquez, Iván Filiberto Manzano e Juan de Dios Velázquez.

Os oito tinham três coisas em comum: viviam e trabalhavam na região fronteiriça, cruzavam a fronteira de maneira legal com frequência e eram conhecidos em seus círculos sociais como pessoas que contribuíam para melhorar a sociedade.

A distância entre a casa da professora Elsa e o Wallmart, onde ocorreu o ataque, é de menos de 10 quilômetros. Ciudad Juárez e El Paso, na realidade, formam uma só cidade, envoltas pela mesma paisagem empoeirada e desértica. As avenidas que atravessam uma também passam pela outra e até compartilham do mesmo nome. Com frequência, membros de uma mesma família que moram nos dois lados da fronteira se reúnem nos fins de semana, seja no lado mexicano ou no americano.

As únicas coisas que realmente separam as duas cidades são o Rio Grande, que não passa de um pequeno fio d’água, e um alambrado que se desvanece visualmente a poucos metros de distância. Na verdade, a forma mais clara de distinguir onde termina Juárez e começa El Paso é a estranha escultura monumental na forma de uma letra X vermelha, que se encontra no lado mexicano.

Todos os dias, cerca de 10 mil pessoas cruzam legalmente a fronteira de uma cidade para a outra, seja a pé, seja a bordo do transporte público, de caminhões de carga ou de veículos particulares, em quatro pontos de travessia.

Muitas dessas milhares de pessoas vão todas as manhãs de Juárez para El Paso para ir ao trabalho, à escola ou ao supermercado. O trajeto contrário, de El Paso para Juárez, muitos fazem para encher tanques de gasolina, ir à farmácia ou ao médico, por ser mais barato do que nos Estados Unidos, ou apenas por lazer.

Muitos outros mexicanos e migrantes de diferentes lugares na América Latina cruzam ilegalmente a fronteira pelo deserto em busca de trabalho, colocando suas próprias vidas em risco ao fugir da pobreza, da violência ou de ambas as coisas.

Esse fluxo migratório tem sua história. Foi patrocinado por ambos os países em 1942 com a assinatura do acordo bilateral “Programa Bracero”, enquanto ocorria a Segunda Guerra Mundial. O objetivo era contratar mão de obra mexicana, o que permitiria à economia dos Estados Unidos resolver o déficit de trabalhadores, já que uma parte dos seus foi enviada para os campos de batalha.

Embora a guerra tenha terminado três anos mais tarde, os dois governos estenderam o programa até 1964, uma vez que a economia americana cresceu exponencialmente no pós-guerra. Isso explica por que 83% dos 680 mil habitantes de El Paso são descendentes de hispânicos. Principalmente mexicanos.

Por quatro anos consecutivos, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por meio do Twitter, vem realizando uma campanha massiva de ódio contra os mexicanos em particular e contra os migrantes de modo geral. Ele faz isso desde 16 de junho de 2015, quando anunciou que concorreria à indicação do Partido Republicano para disputar as eleições presidenciais.

“As pessoas que o México nos envia não são as melhores, eles estão enviando pessoas que têm muitos problemas… trazem drogas, são criminosos, e alguns, suponho, seriam boas pessoas, mas falo com gente na fronteira que me conta o que acontece”, afirmara Trump naquele dia.

Durante a campanha eleitoral, ele anunciou que, se vencesse a presidência, mandaria construir um muro de 3 mil quilômetros na fronteira com o México.

O discurso insultante encontrou eco em um nicho da população americana que, durante anos, se manteve em um papel de certa forma discreto.

Anabel Hernández é vencedora do Prêmio Liberdade de Expressão da DWAnabel Hernández é vencedora do Prêmio Liberdade de Expressão da DW

Eu morava na baía de São Francisco, na Califórnia, quando Trump iniciou sua campanha. Nessa zona progressista, os acadêmicos da prestigiada Universidade de Berkeley zombavam do empresário. Eles o chamavam de “palhaço”, “ridículo” e “ignorante” e estavam certos de que ninguém como ele poderia chegar à presidência dos Estados Unidos.

Eu estava lá quando, em novembro de 2016, ele foi eleito presidente. Vi uma classe intelectual aos prantos, sem entender o que estava acontecendo. Uma professora do departamento de Espanhol e Português chegou a dizer que aquele era o pior dia de sua vida.

A atitude de alguns americanos começou a mudar, até mesmo nas zonas consideradas não racistas. Como em Santa Cruz, na Califórnia, por exemplo. Lembro-me de uma americana me contar, com indignação e alarme, como ficou tocada em presenciar, após o triunfo de Trump, em uma praia que visitava todos os dias, uma família hispânica ser expulsa de seu lugar por uma família americana, simplesmente por isso, por ser hispânica.

A propaganda de ódio de Trump continua de maneira constante:

“O México está permitindo que milhares de pessoas atravessem nossa estúpida porta aberta. Os mexicanos estão rindo de nós enquanto os ônibus entram.” “O México está enganando totalmente os Estados Unidos.” “Desde 2000, a Carolina do Norte perdeu 300 mil empregos nas fábricas, e Ohio, 400 mil, que foram levados para o México.” “O sistema jurídico mexicano é corrupto, como grande parte do México. Paguem o dinheiro que me devem agora e deixem de enviar criminosos para a nossa fronteira.” “O México não é nosso amigo, eles estão nos matando na fronteira e estão nos matando no emprego e no comércio.” “Construirei um muro e farei com que o México pague por ele”.

Essas foram algumas de suas frases no Twitter durante os últimos quatro anos.

É histórica a ignorância em discursos de ódio no mundo. O de Trump não é exceção. Em suas mensagens racistas, ele jamais menciona a existência do “Programa Bracero”, nem a riqueza que a mão de obra legal e ilegal mexicana gerou aos EUA durante décadas.

Ele também não menciona que as drogas mais consumidas pelos cidadãos americanos não são as traficadas pelos cartéis mexicanos, e sim os medicamentos com opioides produzidos legalmente por empresas farmacêuticas americanas e adquiridos em um mercado ilegal de receitas médicas emitidas no próprio país.

Segundo um informe publicado em outubro de 2018 pela agência de combate às drogas dos EUA (DEA), os medicamentos de prescrição controlados são os responsáveis pelo maior número de mortes por overdose desde 2001 no país, mais do que qualquer outra droga ilegal.

“O México se aproveitou dos Estados Unidos durante décadas… o México fez uma fortuna com os Estados Unidos durante décadas”, escreveu Trump em junho de 2019.

Em um manifesto racista anti-imigrantes que a polícia do Texas atribui a Patrick Crusius, o autor fala de uma “invasão hispânica no Texas” e de um suposto risco de que eles venham a tomar o controle econômico e político do estado.

“Se pudermos nos livrar de pessoas suficientes, nossa forma de vida poderá ser mais sustentável”, escreveu o jovem que, armado com um fuzil AK-47, dirigiu por mais de nove horas madrugada adentro a partir de Allen, no Texas, até o Walmart, onde abriu fogo diretamente contra centenas de pessoas que ali estavam. O objetivo era matar “tantos mexicanos quanto fosse possível”, confessou o atirador após ser preso.

“As doenças mentais e o ódio puxaram o gatilho, e não a arma”, afirmou Trump sobre o massacre de El Paso. O homem que tenta se reeleger para um novo mandato disse que o ódio não tinha lugar nos EUA e que o racismo, a “supremacia branca” e a intolerância devem ser condenados. Ele mesmo teria que ser o primeiro a entender essa mensagem.

Ainda é impossível calcular as repercussões que o crime racista perpetrado em El Paso terá nos Estados Unidos e no México. Mas eu gostaria de enfatizar uma coisa. Li dezenas de mensagens publicadas por amigos, familiares e colegas de trabalho da professora Elsa Mendoza que falavam de sua atitude amorosa, solidária e alegre com os outros. Certamente ela não enfatizava as diferenças entre seus alunos e os demais, mas as semelhanças e o grande potencial de somarem suas forças – ao contrário de Trump.

A jornalista e autora Anabel Hernández escreve há anos sobre cartéis de drogas e corrupção no México. Após ameaças de morte, teve que deixar o país, e vive na Europa desde então. Por seu trabalho, recebeu o Prêmio Liberdade de Expressão da DW em 2019, durante o Global Media Forum, em Bonn.

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A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. 

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