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quarta-feira, 27 março, 2024

França: Reforma da Legislação do Trabalho Rumo a um “capitalismo western” sem lei? 

Entrevista com David Cayla (dos Economistes Atterrés), Le Vent se Lève
“Único real vencedor nas eleições parlamentares na França foi
o eleitor ausente, QUE NEM SE DEU O TRABALHO DE IR VOTAR: 56.6% de abstenções”
19/6/2017, Pepe Escobar, pelo Facebook

Os contornos da nova Lei-Trabalho definida como prioridade dos cinco anos de governo de Emmanuel Macron, foram esboçados pelo governo essa semana. Sem surpresas, o projeto faz pressentir a desregulamentação mais violenta do mercado de trabalho e a aceleração do desmonte dos chamados serviços sociais. Do que se trata? Que impacto se devem esperar sobre a atividade econômica e os assalariados? Quem começa a decifrar esses enigmas é David Cayla,maître de conférences em economia na Universidade d’Angers e membro dos Économistes Atterrés.

Le Vent se Lève (LVSL) : Emmanuel Macron prevê legislar por decretos, para reformar em profundidade o Direito do Trabalho na França. Esse novo projeto aparece um ano depois de ter entrado em vigor as principais medidas previstas na Lei El Khomri. Quais as implicações dessa primeira Lei do Trabalho?

David Cayla: A lei El Khomri visava a responder às repetidas demandas da Comissão Europeiaque há anos insiste para que a França reforme e flexibilize seu “mercado de trabalho”. Essa demanda, que diz respeito também aos países do sul da Europa, entra no quadro da coordenação de políticas econômicas europeias. Com efeito, a introdução do euro levou a crescentes desequilíbrio entre países do norte, de um lado, e países do sul, de outro. Os países do norte, Alemanha à frente, beneficiam-se da própria potência industrial para gerar imensos excedentes, que estão na origem da crise do euro (2011-2013). A Comissão Europeia então pretende reduzir esses desequilíbrios obrigando países, principalmente a França e os países do sul a ‘resolver’ seus desequilíbrios comerciais com esses ‘ajustes’. Os países que têm déficit devem cortar despesas (o que atende pelo nome de ‘políticas de austeridade’ [também chamadas “políticas de sado-austeridade“]) e aumentar a própria competitividade, o que passaria por fazer baixar o custo do trabalho.

Ou, a maior parte das legislações sociais na Europa proíbem os empregadores de modificar unilateralmente seus contratos de trabalho. Para baixar o custo do trabalho, então, é preciso pôr fim às leis que realmente protegem os assalariados e deixar que o “livre jogo” do marcado organize a redução das remunerações. A aposta aí é que, sob as atuais condições, de alto desemprego, quanto mais “livre” o mercado, mais os assalariados serão obrigados a reduzir suas exigências e, assim, o custo do trabalho será diminuído.

Os governos de François Hollande integraram-se perfeitamente a essa lógica desde 2012. O congelamento do salário mínimo [fr. salaire minimum de croissance, SMIC] e das remunerações de cargos públicos e até do Crédito de Imposto para a Competitividade e o Emprego [fr. crédit d’impôt pour la compétitivité et l’emploi, CICE] são medidas que, todas elas, visam a submeter o país àquelas exigências da Europa. Além disso, Emmanuel Macron já o reconheceu muito formalmente. Em maio de 2016, em pleno debate sobre a “lei trabalho”, Macron, numa entrevistaaos Echos conclamou os empresários à “moderação salarial” (sic), em nome da competitividade.

A redução do custo do trabalho já era portanto objetivo principal da lei El-Khomri, posto que previa explicitamente que as empresas poderiam descumprir acordos coletivos nas negociações sobre o tempo de trabalho, quer dizer concretamente, que poderiam reduzir a sobre-remuneração das horas extras de 25% a 10%. Por outro lado, facilitando a dispensa por motivos econômicos [abreviadamente, “dispensas econômicas”, fr. les licenciements économiques], a lei beneficia obviamente o empregador nas negociações salariais.

Em resumo, já quase esquecemos, mas a Lei El Khomri foi completada (num enésimo passo), por um dispositivo social a “garantie jeune” [lit. “garantia jovem”], que permite que adultos jovens de menos de 25 anos e sem recursos, beneficiem-se de um dispositivo de acompanhamento e inserção e até de uma remuneração ligeiramente inferior à Renda de Solidariedade Ativa [fr.Revenue de Solidarité Active]. Ironicamente, essa medida apresentada como se fosse “novo direito”, para ajudar a engolir a pílula amarga da lei, não passa de transposição de uma diretiva europeia de abril de 2013 que a França ainda não havia aplicado. Por essa lei, a França põe-se duplamente em conformidade com o que a Europa prescreve.

LVSL: O programa presidencial de Emmanuel Macron e os documentos do Ministério do Trabalho que Libération revelou mostram claramente as grandes linhas dos decretos futuros. Qual é a filosofia que preside esse projeto de reforma e quais os objetivos?

David Cayla: A filosofia é a mesma da lei anterior. Emmanuel Macron sempre entendeu que a Lei Trabalho não fora suficientemente radical na desregulamentação. Para começar, não impôs qualquer teto às indenizações devidas ao empregado no caso de demissão abusiva. Além disso, as reformas do trabalho impostas aos nossos vizinhos foram muito mais violentas e permitiram reduzir os salários nominais das empresas, o que a lei El Khomri não permite (exceto no caso específico das horas extras). Ou, nas profissões nas quais há desemprego massivo, especialmente nos empregos não qualificados na área de serviços, as margens de manobra são importantes em matéria de redução de salários. OK, ninguém pode cair abaixo do salário mínimo, mas podem-se suprimir prêmios [fr. des primes] (por assiduidade, 13º salário, férias, direitos por idade, prêmios por resultados, tíquetes restaurante, etc.), os mínimos por categoria [fr. les minimas de branches], tíquetes restaurantes e, até, rediscutir critérios de perigo ou insalubridade no trabalho. Caricaturando um pouco, as ‘pistas’ que Libération descobriu e divulgou permitiriam aplicar o regime de trabalhadores avulsos aos assalariados franceses.

Nesse sentido, dois dispositivos pareceram especialmente perigosos. O primeiro é o que dá aos empregadores a possibilidade de iniciar referendos de empresa. Ao contrário do que parece, esses referendos em nenhum caso são “democráticos”. Para começar, porque num referendo de empresa os assalariados são submetidos a uma escolha binária: aceitar ou recusar. E o risco é que a recusa pode ser imediatamente punida por demissão. E referendo mas faz pensar, muito mais, num dispositivo de chantagem. Diferente de um governo que, se perde um referendo, não pode por isso “dissolver o povo”, um empregador pode perfeitamente “dissolver” seus assalariados e pedir asilo à Polônia, ou onde for. Além disso, a lógica referendária é a negação do próprio princípio da democracia social e da negociação.

Se a democracia na empresa implica representantes do pessoal, dos sindicatos, incontáveis reuniões… é porque as questões são complexas e porque os pontos de vista sobre as questões não raras vezes são muito distantes uns dos outros. Ora, uma empresa, para funcionar bem, não pode excluir todas as discussões e negociações, que, afinal, são momentos quando os representantes dos assalariados e do empregador podem conhecer os respectivos pontos de vista.

Mas pelo referendo de iniciativa dos patrões, o empregador pode simplesmente pôr em curto-circuito toda aquela democracia social. No curto prazo, sem dúvida o empregador talvez tenha a impressão de que ganha tempo. No longo prazo, se privará de todas as ferramentas que lhe permitiam conhecer a própria empresa e seus empregados. A ditadura do chefe não é nunca modelo duradouro de eficácia.

Outro dispositivo particularmente perigoso: a primazia do acordado sobre o legislado e contratado. Hoje, se se assina um contrato entre duas pessoas, nenhuma modificação nos dispositivos daquele contrato é possível sem o acordo das pessoas envolvidas. O projeto queLibération divulgou prevê que a empresa possa impor-se aos contratos já firmados. Se um contrato prevê remuneração de 1.500 euros líquidos, um acordo de empresa poderá reduzi-la para 1.200 euros sem o acordo individual dos assalariados. Claro, para que um acordo de empresa seja validado, terá de ter o assentimento da maioria dos assalariados ou de seus representantes. Missão impossível? Não, se o empregador usar a velha fórmula do “dividir para governar”. Assim poderá impor um acordo por referendo que preveja a redução de salários de uma minoria de assalariados (dos vendedores, por exemplo)… depois multiplicar os “acordos” até que todos os salários tenham sido cortados (depois dos vendedores, as secretárias, depois os gerentes, etc.…).

Como se vê nesse exemplo, o “combo” – “referendo de iniciativa patronal” e “predominância dos acordos de empresa” – dará aos empregadores a possibilidade de, afinal, reduzir todos os salários em todas as empresas francesas, em operação perfeitamente legal.

LVSL: O presidente quer que a lei limite-se a fixar os grandes princípios do Direito do Trabalho. Quanto ao resto, a negociação coletiva por empresa dever prevalecer, sobretudo sobre os acordos por categoria. Concretamente, o que significa isso?

David Cayla: As categorias profissionais reúnem todas as empresas de um setor econômico. O interesse de negociar acordos por categoria é que a maioria das empresas enfrentam os mesmos problemas e podem portanto se entender facilmente quanto a soluções comuns adotando normas ou acertando-se quanto ao que entendam por boas práticas. Para os assalariados, as negociações por categoria são também um meio de se unirem e de defenderem interesses coletivos comuns num dado setor de atividade, principalmente sobre condições de trabalho e salários. Frequentemente, em empresa individual, os sindicatos não conseguem fazer-se ouvir, porque as negociações implicam relações humanas e profissionais, acima de questões puramente sindicais. E não esqueçamos que em inúmeras empresas, simplesmente nem existe representante sindical, o que torna todas as negociações extremamente difíceis.

As negociações por categoria têm outra vantagem. As empresas de um mesmo setor são concorrentes. Negociando na escala da categoria, elas suspendem a concorrência e cuidam de garantir que os acordos e as “boas práticas” sejam respeitados por todos. Assim, também impedem o dumping, quer dizer, a concorrência desleal. De repente, permitir que as empresas ignorem seus contratos, é autorizá-las a se separar do quadro comum, o que torna mais violenta a concorrência e leva as empresas ao enfrentamento, não por critérios de desempenho, mas como disputa pela deslealdade mais agressiva.

Porque é preciso sermos bem claros: ninguém mais perderá tempo com negociações por categoria, se no plano empresarial a lei admitir que se desrespeitem acordos. Ora, esses acordos por categoria são essenciais à regulação da economia. Na crise dos anos 30 nos EUA foi graças à entrada em vigor desse tipo de acordo por setor, que o New Deal conseguiu arrancar o país da deflação. Enfraquecer as categorias profissionais, portanto, é enfraquecer a regulação econômica e promover um capitalismo de western selvagem, “sem fé e sem lei”.

LVSL: Outro tema prioritário que Macron já anunciou é o teto que limitará as indenizações para casos de dispensa sem causa real e séria. É medida que os patrões reivindicam há muito tempo. Os documentos do Ministério do Trabalhopressagiam o fim de qualquer limite à despensa sem justa causa. As atuais condições para demissão são realmente fator impeditivo para que as empresas empreguem?

David Cayla: Não acredito que a ideia seja incitar as empresas a empregar mais. Hoje não é difícil empregar alguém na França e o Direito do Trabalho já admite múltiplas formas de emprego, do temporário ao emprego por tempo indeterminado [fr. Contrat à Durée Indéterminée, CDI] clássico, passando pelos CDD [duração determinada], contratos por tarefa, de férias, etc. Além disso, quando uma empresa precisa de mão de obra, ela não se pergunta sobre a dispensa do empregado em cinco ou dez anos, sobretudo porque hoje os contratos são na maioria por tempo determinado, contratos nos quais a questão da dispensa do emprego sequer existe.

Minha avaliação é que essas medidas não se dirigem às empresas francesas, mas aos investidores internacionais, sobretudo os habituados ao Direito anglo-saxão, que dá fraca proteção aos assalariados dispensados. Ao se aproximar daquela norma, o governo acredita que esteja enviando um “sinal” ao capital estrangeiro em busca de país onde se instalar. Porque a questão da competitividade não se põe só em termos de balança comercial. Trata-se também, numa economia aberta, de mostrar que se oferecem as “melhores” condições possíveis, aos industriais desejosos de iniciar uma atividade na França. E nessa competição suposta “social” praticamente não há limite algum, desde que se considerem as convenções da OIT. O problema é que nem as convenções da OIT são sempre respeitadas: a França aplica 81 convenções da OIT, a Alemanha apenas 59 e os EUA, 12! Sem contar que todas essas convenções podem evidentemente ser denunciadas a qualquer momento pelos países signatários.

LVSL: Essas medidas lhe parecem apropriadas, para lutar contra o desemprego? Não se deve temer que tenham impacto negativo sobre a atividade econômica?

David Cayla: Aí é que está o problema! Ao aceitar que a França embarque numa guerra de competitividade, François Hollande e Emmanuel Macron romperam definitivamente com as políticas keynesianas que visavam a estimular a atividade econômica pela via da demanda. Convencidos (erradamente, claro) de que essas políticas já não funcionariam num mundo aberto à concorrência, eles deduziram que só seria viável uma política que estimulasse a oferta.

Agir sobre a demanda implicava aumentar o consumo dos lares e as despesas públicas para estimular a produção das empresas e o emprego. Porém, uma parte desse aumento da demanda tende logicamente a aumentar as importações e, portanto, a estimular a atividade econômica de nossos vizinhos. Num mundo cooperativo, não seria problema. Pode-se perfeitamente conceber que os países ponham-se de acordo para se ajudarem economicamente uns os outros. Mas o mundo de hoje já não é cooperativo, mas competitivo, inclusive dentro da União Europeia onde a cooperação já há muito tempo cedeu lugar à concorrência a mais encarniçada!

Assim, nesse mundo onde cada um quer ser mais competitivo que o vizinho, a única política possível é a política da oferta, que visa a conquistar partes de mercado pelas costas dos próprios parceiros, diminuindo o custo do trabalho e dos direitos sociais.

O problema é que se todo mundo faz essa mesma política os ganhos dos cidadãos diminuem e a demanda naufraga, mais ou menos como se cada um se batesse para ficar com uma fatia cada vez maior, de um bolo que está desaparecendo. As empresas, diante dos golpes dessa guerra econômica exigem então que os governos lhes garantam cada vez mais sustentação, o que reforça a lógica da política da oferta.

Nesse jogo de perde-perde, os principais perdedores são, bem evidentemente, os assalariados que veem as próprias condições de trabalho degradarem-se cada dia mais; e as economias mais frágeis, caso da Grécia, que são empurradas para uma espiral depressiva sem fim. Fica assim bem evidente que essas políticas, no final, só podem ter resultados desastrosos. E evidentemente não conseguirão resolver o problema do desemprego.*****

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