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quinta-feira, 28 março, 2024

Guatemala: mulheres maias querem justiça em julgamento históric

 Noticias Aliadas
Adital

Louisa Reynolds

Petrona Choc, de 75 anos, não titubeou quando contou, diante do tribunal, como os soldados arrastaram ela e seus filhos para fora de sua casa, em 1982, dispararam contra seu esposo e a detiveram contra a sua vontade juntamente com outras mulheres, em uma base militar próxima, onde foi violentada repetidamente e obrigada a cozinhar para seus sequestradores.

“Um dia, chegaram os soldados e um dos meus filhos, Abelino, disse: ‘aí vêm os soldados, hoje, vamos morrer’. Reuni meus filhos e lhes disse que fugíssemos para a montanha outra vez, íamos fugindo quando escutamos o trovão dos disparos e aí morreu meu esposo”, relatou ela, no dia 03 de fevereiro, ao Tribunal A de Maior Risco.

Choc é uma das 11 mulheres maia q’eqchí da pequena localidade de Sepur Zarco, no departamento oriental de Izabal, que se encontraram cara a cara com os dois homens que as ordenaram a cozinhar, limpar e as submeteram à violação sistemática há três décadas: o ex-comandante da base, Esteelmer Reyes Girón, e o ex-comissário militar regional, Heriberto Valdez Asij.

Esta é a primeira vez no mundo que o crime de escravidão sexual, ocorrido durante um conflito armado, é julgado no país onde foi cometido.

“Nos violaram, grande foi o sofrimento que nos causaram, e me diziam que já não havia ninguém que perguntaria por mim”, disse Choc. Seu testemunho era tão devastador que, em vários momentos, o intérprete parecia visivelmente comovido e à beira das lágrimas.

Reyes Girón e Valdez Asij são acusados de terem ordenado e permitido a violação, escravidão, desaparecimento forçado e o assassinato de não combatentes, crimes que lesam a humanidade e que não são considerados pela lei da anistia de 1996.

A violação como arma

As vítimas foram sequestradas e escravizadas, em 1982, durante a ditadura de Efraín Ríos Montt (1982-83), que foi condenado por genocídio e crimes que lesam a humanidade, em 2013, e, atualmente, enfrenta um novo julgamento, após o veredito ter sido anulado por um tecnicismo. Embora tenha sido curto, o regime de Ríos Montt foi uma das etapas mais sangrentas do conflito armado guatemalteco, já que as Forças Armadas intensificaram seus ataques contra as comunidades indígenas, sob a crença de que protegiam guerrilheiros.

Segundo a Comissão para o Esclarecimento Histórico (CEH), até 1979, a violação era usada seletivamente pelas Forças Armadas contra mulheres pertencentes a organizações guerrilheiras. No entanto, na década de 1980, foi utilizada sistematicamente como parte dos ataques do Exército contra as populações civis indígenas. A CEH registrou 1.465 casos de violação cometidos durante os 36 anos de conflito armado. 80% das vítimas eram indígenas.

Durante a audiência de abertura, no dia 1º de janeiro, a promotora Hilda Pineda disse que a violência sexual era usada como “arma de guerra” contra a população civil. Três homens maia q’eqchí declararam que os militares separavam homens e mulheres, para que as mulheres pudessem ser violadas em grupo pela tropa. Também disseram que ficaram sem casa após os soldados os obrigarem a desmantelarem suas cabanas e a levarem madeira e placas de alumínio para a base militar, onde foram usadas como materiais de construção. Os três testemunhos apontaram Valdez Asij e disseram que ele estava presente no lugar foram cometidos esses crimes.

O julgamento pelo caso Sepur Zarco está sendo conduzido na mesma sala em que foi realizado o julgamento por genocídio contra Ríos Montt, em 2013. Tal como ocorreu neste caso, a defesa tratou de barrar o processo, ao apresentar uma interminável sucessão de apelações, reclamando que a juíza Yassmin Barrios não era imparcial, já que ela já havia emitido decisões em outros casos vinculados com violações aos direitos humanos cometidos durante o conflito armado.

Militares presos

Duas semanas antes de começar o julgamento pelo caso Sapur Zaco, foi dado outro passo importante para garantir a justiça pelas vítimas de violações durante o conflito armado, com a prisão de 18 oficiais militares pelos massacres e desaparecimentos forçados, cometidos na década de 1980.

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Quatorze presos são acusados por desaparecimento forçado e tortura, relacionados a uma fossa comum, contendo os restos de 533 corpos, em 84 fossas clandestinas, descobertas em 2012, em uma ex-base militar, no Departamento de Cobán. Entre os presos, encontrava-se o ex-chefe do Estado Maior do Exército, Manuel Benedicto Lucas García, irmão do ditador Fernando Romeo Lucas García (1978-82).

Os promotores também pediram para retirar a imunidade como legislador de Edgar Ovalle Maldonado, um dos oficiais militares aposentado, fundador da Frente de Convergência Nacional (FCN), que levou ao poder o novo presidente da Guatemala, Jimmy Morales, em 2015, para que enfrente acusações pela suposta participação no caso Cobán. No entanto, no dia 28 de janeiro, a Corte Suprema determinou que não havia motivos para processar Ovalle.

Especialistas forenses determinaram que as vítimas de Cobán vieram de diversas partes do país, sugerindo que o lugar poderia ter sido um centro de interrogatórios e detenção. Numerosos corpos se encontravam vendados, com as mãos e pés atados, o que indicaria que foram executados. Alguns tinham feridas de armas, ossos quebrados, que foram curados e rompidos novamente, sinal de que foram torturados antes de serem executados. A promotora geral, Thelma Aldana, se referiu ao caso como “um dos maiores da América Latina de desaparecimentos forçados”.

Os quatro oficiais restantes foram acusados pelo desaparecimento forçado de Marco Antonio Molina Theissen, de 14 anos, sequestrado por integrantes do aparato da inteligência do Exército, em 1981, como vingança pelo ativismo de sua família, como opositora à ditadura de Lucas García. Entre os acusados se encontra o coronel aposentado Francisco Gordillo Martínez, que chegou a ser um dos três membros da junta militar encabeçada por Ríos Montt.

Entretanto, o novo julgamento contra Ríos Montt sobre acusações de genocídio e crimes que lesam a humanidade experimentou um novo retrocesso. No dia 11 de janeiro de 2016, foi suspenso pelo tribunal para resolver petições legais pendentes.

As vítimas se apresentaram para a audiência com as cabeças cobertas por mantas, para evitar serem identificadas, e somente as tiraram quando foi sua vez de prestarem testemunho, já que, ao serem vítimas de violação em comunidades rurais, com frequência, são rechaçadas e isoladas. Muitas integrantes de organizações de mulheres e de direitos humanos que assistiram ao julgamento também cobriram as cabeças em solidariedade.

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Organização Não Governamental sem fins lucrativos que produz e difunde informação e análises sobre a realidade latino-americana e caribenha com enfoque de direitos

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