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sexta-feira, 29 março, 2024

Julgamento de Curuguaty, um novo golpe à resistência na América Latina

Rubén Villalba, o líder de Curuguaty, foi condenado há 30 anos de prisão (EFE)
“A América Latina não quer nem tem por que ser um peão sem rumo ou decisão”, Gabriel García Márquez*.

O Massacre de Curuguaty é um dos episódios mais trágicos da história recente do Paraguai. Os camponeses acusados de matar seis policiais foram condenados nesta segunda-feira (11). Nenhum oficial foi investigado pela morte de 11 trabalhadores rurais que também tombaram no conflito utilizado em 2012 para para impulsionar o golpe contra Fernando Lugo.

Por Mariana Serafini

Conheci o líder de Curuguaty, Rubén Villalba, em 2013, pouco mais de um ano depois de sua prisão, numa ala especial para visitantes no presídio de Tacumbú, região metropolitana de Assunção, a capital do Paraguai. Apesar das condições subumanas às quais foi submetido, porque o local pode ser comparado, talvez, ao extinto Carandiru do Brasil, o líder de Curuguaty tinha firmeza nas palavras e tranquilidade no olhar. “Muitos dos líderes que me inspiram passaram a maior parte de suas vidas no cárcere, o que está acontecendo é uma injustiça, mas estamos aqui porque resistimos e acreditamos numa América Latina mais justa”, ele me disse.

A comitiva de militantes do movimento social paraguaio, outros jornalistas e eu, levava notícias aos presos políticos sobre como estava a situação no assentamento sem-terra de Curuguaty. Pois mesmo depois do massacre, alguns camponeses continuaram no local a fim de demarcar posição e denunciar a injustiça que sofreram.


Camponeses voltam ao lugar do massacre para homenagear os familiares que morreram no combate | Foto: Mariana Serafini 
As notícias não eram boas. As poucas famílias com idosos e crianças, viviam (e permanecem ainda hoje) à margem da estrada, em barracas de lonas pretas sem nenhuma condição de cultivar sequer alimentos para o próprio sustento. A fome, o frio e o medo, porém, não os impediu de continuar acreditando em uma “América Latina socialista”, me disse um dos camponeses quando os visitei, um ano depois do massacre.

O sítio onde aconteceu a matança chama-se “Marina Kue”, em Guarani (idioma oficial do Paraguai junto ao Espanhol) significa “Foi da Marinha”. Ou seja, os camponeses haviam ocupado uma terra do Estado, destinada à reforma agrária. Eram pouco mais de 60 famílias que viviam e trabalhavam no local há alguns anos. Com a eleição de Lugo à presidência, tinham mais esperança em uma reforma agrária justa, mas uma família poderosa e influente do país, os Riquelme, se declarou dona da propriedade e exigiu a reintegração de posse (de algo que claramente não possuíam). Apesar da estranheza dos argumentos, o procurador Khalil Rachid autorizou a ação.

Por volta das 6 horas da manhã do dia 15 de junho de 2012 os camponeses foram surpreendidos por uma ação policial completamente desproporcional a uma simples “desocupação”. Mais de 300 oficiais cercaram o sítio com centenas de viaturas e helicópteros e começaram a matança. O resultado foi 11 trabalhadores rurais e seis policiais mortos. Imediatamente a justiça encarcerou mais de uma dezena de camponeses e alegou que eles teriam “armado uma emboscada” para a polícia.


Sentenças dos presos políticos de Curuguaty
Ninguém foi investigado pela morte dos 11 camponeses. A Coordenadoria de Direitos Humanos do Paraguai (Codehupy), fez um estudo forense de forma independente e descobriu que as armas dos camponeses (leia-se carabinas e outros instrumentos obsoletos) não foram disparadas durante o conflito e os seis policias morreram com tiros de alto calibre, capazes de perfurar os coletes à prova de balas. Ou seja, nem que os camponeses tivessem a intenção de matar, eles não teriam condições estruturais para isso. A justiça paraguaia nunca se prestou a analisar este documento e simplesmente ignorou os fatos. De tal forma que os presos políticos foram mantidos no cárcere sem julgamento até esta segunda-feira (11) quando foram condenados pelo crime que aparentemente não cometeram.
Desde que Rubén e seus companheiros foram presos, acusados de serem os responsáveis pela morte dos seis policiais, movimentos sociais iniciaram uma onda de mobilizações para pedir a elucidação do crime. A palavra de ordem era “Que Pasó em Curuguaty?” (o que aconteceu em Curuguaty? Em tradução livre).

Este massacre meticulosamente planejado e executado com uma estrutura bélica surpreendente para a pobreza da região, era a justificativa necessária para a direita impulsionar o golpe parlamentar contra Fernando Lugo. Afinal, comoveu a direita porque morreram policiais, e a esquerda, porque morreram camponeses. O argumento apresentado na época era de que o presidente não tinha “capacidade administrativa” e as pessoas estavam “se matando no campo”.
Movimento 15 de Junho protesta contra a prisão dos camponeses no sítio onde aconteceu o massacre | Foto: Mariana Serafini 

Apenas sete dias depois, em 21 de junho de 2012, Fernando Lugo sofreu um julgamento político relâmpago, que durou menos de 48 horas e foi deposto do cargo de presidente da República. Ao se eleger, o ex-bispo da Igreja Católica havia rompido a hegemonia do Partido Colorado que até então estava há 62 anos consecutivos no poder.

Diferente da população que se mobilizava de Norte a Sul do país para tentar impedir o golpe, Fernando Lugo aceitou o resultado sem nenhuma resistência. Saiu pela porta da frente, de cabeça erguida, com a sensação de dever cumprido. Alguns meses mais tarde conversamos e lhe perguntei sobre sua resiliência. Afinal, imediatamente depois do golpe ele já estava pronto para concorrer ao cargo de senador nas eleições presidenciais (posição que ocupa atualmente). Já imaginava a resposta, mas insisti mesmo assim e ele foi enfático: “tinha medo de um derramamento de sangue”. Pode parecer exagero, mas a polícia que cercava a manifestação na praça em frente ao Palácio do Governo não usava balas de borracha. O golpe foi parlamentar, mas a ação teve, digamos que uma ajuda considerável, das Forças Armadas.

Operação Lava Jato, a sofisticação do massacre

O modelo deu certo. Implementa-se uma crise política, a imprensa infla o caso, gera comoção social, o parlamento já articulado se prepara e dá o bote. Tão certo que, apenas quatro anos depois foi implementado no Brasil. Aqui não houve um massacre, e sim perseguição e desmoralização política. Criou-se a sensação de o país estar afundado numa crise política e econômica sem volta com centenas de políticos completamente incapazes de levar adiante seus mandatos. O cenário perfeito para justificar um golpe de Estado.

Em pouco tempo, a presidenta Dilma foi afastada depois de uma votação que entrou para a história como, talvez, o episódio mais vergonhoso da Câmara dos Deputados e outra, um pouco menos escrachada do Senado. Como Lugo, Dilma saiu de cabeça erguida, serena e com a certeza de estar do lado certo. Aqui ainda não se sabe qual será o resultado da operação/massacre político. Mas a história costuma se repetir, muitas vezes como tragédia.


Manifestação realizada em Assunção pela liberdade dos presos políticos | Foto: Cigarrapy
A condenação dos presos políticos de Curuguaty é a maior injustiça que estes camponeses pobres poderiam sofrer na vida. Claramente, depois do sucesso do golpe, o julgamento tomou este rumo para deixar claro à esquerda quem manda neste tabuleiro de xadrez, onde o Paraguai não se constrange em ser o peão do imperialismo.

Pouco tempo depois do massacre, um estudo divulgado pela Agência Pública mostrou o envolvimento de agentes externos na ação policial. Trata-se, de fato, de uma ação para impulsionar o golpe. Afinal, o Paraguai, assim como a Colômbia, tem bases militares norte-americanas em seu território e conta com “apoio tático” das forças armadas estrangeiras. Lugo foi o primeiro presidente a questionar esta ingerência. Além do mais, o país está geograficamente posicionado de forma a atingir o Brasil, a Argentina e a Bolívia se necessário.

Nos organismos internacionais, como o Mercosul, a Unasul e a Celac, o Paraguai de Lugo era um forte agente da integração. Mas o Paraguai de Horacio Cartes, do Patido Colorado, é novamente um empecilho ao desenvolvimento do projeto de continente progressista impulsionado por Hugo Chávez. Motivos para um golpe de Estado não faltaram.

“É tempo de liberdade”, gritam os movimentos sociais do Paraguai, da Argentina, do Uruguai, do Brasil e de outros países da América Latina. Dada a sentença, mais do que nunca, é tempo de lutar para provar a inocência de Rubén e seus companheiros de luta. Os chamados “observadores de Curuguaty”, ativistas de todo o mundo que acompanham o processo e exigem transparência, vão continuar em defesa desta causa considerada perdida.


Familiares das vítimas do massacre plantam árvores no lugar do crime | Foto: Conamuri Paraguay
Um ano depois do massacre, em 2013, as famílias dos camponeses assassinados conquistaram o direito de voltar ao local do crime para fazer uma manifestação simbólica. A conexão destas pessoas com a terra, único meio de sobrevivência que eles conhecem, é tanta que no exato lugar onde cada um dos trabalhadores rurais morreu em combate, uma árvore foi plantada. Esta foi a forma encontrada por eles de substituir a morte pela vida.

Esta condenação injusta é, sobretudo, um golpe contra a resistência latino-americana. A direita que articulou o golpe e o Estado paraguaio dão por encerrado o caso de Curuguaty, mas se esqueceram de que cada um dos camponeses é uma semente e as árvores já começam a florescer.

Ouça a canção Hermano Campesino do músico paraguaio Hugo Flecha em homenagem aos camponeses de Curuguaty:

*Trecho do discurso de Gabriel García Márquez ao receber o Prêmio Nobel de Literatura em 1982
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Do Portal Vermelho

 

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