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terça-feira, 19 março, 2024

A lógica do capitalismo neoliberal

por Prabhat Patnaik [*]
O capitalismo é um sistema “espontâneo” no sentido de que a sua dinâmica se caracteriza pelo desdobramento de certas tendências imanentes, tais como a mercantilização de tudo, a destruição da produção pré capitalista e o processo de centralização do capital. Levanta-se a questão: qual é o papel do Estado nesta dinâmica espontânea do capitalismo? Em geral o Estado numa sociedade capitalista ajuda esta dinâmica, removendo entraves e acelerando a operação das suas tendências imanentes. Entretanto pode haver certas conjunturas históricas em que a correlação de forças de classe é tal que o Estado pode ter de actuar para restringir a espontaneidade do capitalismo.
A conjuntura do pós guerra foi uma dessas, quando o enorme crescimento do campo socialista, o surto de confiança da classe trabalhadora nas metrópoles e a ascensão das lutas anti-coloniais de libertação no terceiro mundo, conjugaram-se para colocar uma séria ameaça à própria existência do sistema. A descolonização e a instituição da intervenção do Estado na “administração da procura” para assegurar altos níveis de emprego nas metrópoles (a qual assumiu mesmo a forma de medidas de Estado Previdência nos países da Europa onde a ameaça socialista era mais séria), foram caminhos pelos quais o sistema enfrentou esta ameaça existencial, com o Estado capitalista a actuar em certa medida para restringir a espontaneidade do sistema, embora de modo algum para eliminá-lo (pois isso é impossível enquanto o sistema existe). Além disso, nas economias descolonizadas, os Estados que se constituíram fora da [comunidade] de países socialistas, embora de carácter burguês no sentido de promover o desenvolvimento capitalista, devido à herança da luta anti-colonial também atuaram para restringir a espontaneidade do sistema.
Mas a própria centralização do capital verificada durante este período criou acumulações financeiras maciças cujo impulso para abolir fronteiras nacionais que restringiam sua liberdade de movimento inaugurou o atual regime de globalização que se caracteriza pela globalização do capital e, acima de tudo, da finança. O Estado-nação sob este regime perde sua autonomia face à globalização da finança, uma vez que qualquer movimento da sua parte para atuar de uma maneira oposta às exigências da finança provoca uma fuga financeira e portanto uma crise interna. Portanto, os Estados-nação de fato mais uma vez promoveram, ao invés de restringir, as tendências imanentes do capital. As políticas através das quais eles assim o fazem são aquilo a que chamamos as políticas neoliberais. O neoliberalismo, em suma, restaura a “espontaneidade” do capitalismo”. Encarar o Estado neoliberal como a “retroceder” em favor do “mercado” é enganoso – o Estado atua de acordo com as exigências do capital financeiro internacional e da oligarquia corporativa-financeira interna integrada com ele e, com isso, ajuda a “espontaneidade” do sistema.
ASSALTO À PEQUENA PRODUÇÃO
Arrendatários protestam na Índia. Uma vez que uma importante tendência imanente é a destruição da pequena produção pré capitalista, esta reafirmação da “espontaneidade” do sistema capitalista mostra-se, inter alia, como um assalto à pequena produção, incluindo a agricultura camponesa, por toda a parte. A crise agrária e os suicídios de camponeses que assistimos na Índia na era neoliberal são simplesmente a expressão deste assalto. Eles ocorrem não porque a agricultura seja “abandonada” sob a administração neoliberal, como habitualmente se pensa, mas por causa desta mesma administração.
Os mecanismos através dos quais se verifica este assalto à pequena produção constituem o que Marx chamou o processo de “acumulação primitiva de capital”. Se bem que a acumulação primitiva seja logicamente distinta, e ocorra historicamente antes, do que se pode chamar a acumulação “normal” de capital estudada pormenorizadamente no Capital, ela não está confinada só ao período anterior àquele em que o capitalismo se pôs de pé. Ao contrário, ela ocorre através de toda a história do capitalismo, utilizando colonialismo como sua arma principal, como Marx observou nos seus escritos sobre a Índia. O Estado colonial efetuou esta acumulação primitiva a expensas dos pequenos produtores através dos processos paralelos de “drenagem de excedente” e “desindustrialização”, ao passo que o Estado neoliberal utiliza outros instrumentos (como vemos abaixo), mas a sua manifestação na forma de uma crise da pequena produção permanece a mesma. Em suma, a actual crise agrária é uma re-emergência, embora sob circunstâncias mudadas, da prolongada crise agrária da era colonial que fora interrompida por algum tempo durante a era dirigista.
Não [significa] que na era dirigista não houvesse acumulação primitiva de capital: a expulsão de arrendatários (tenants) que assinalou a transição rumo à agricultura capitalista da variedade junker durante este período foi um exemplo óbvio disto. Mas isto foi acumulação primitiva a verificar-se dentro da economia agrária, não infligida pelo grande capital a partir de fora. Agora, verifica-se além disso que tal acumulação primitiva infligida a partir de fora pelo grande capital e pelo Estado neoliberal (o qual ao invés de aparentemente pairar acima das classes e cuidar dos interesses de “todos” torna-se preocupado acima de tudo com a promoção dos interesses da oligarquia corporativo-financeira). Pode-se pensar que quanto a isto não há necessidade de distinguir entre a era dirigista e a era neoliberal uma vez que a acumulação primitiva ocorre sob ambas. A questão entretanto é que a acumulação primitiva da espécie que se verifica neste último período é sobreposta à acumulação primitiva verificada durante o período anterior, a qual também continua no período posterior. É isto que explica a virulência da crise agrária de hoje.
O assalto à agricultura camponesa assume duas formas. Uma, constituindo acumulação primitiva em termos de “fluxo”, implica um esmagamento de rendimentos da agricultura e portanto da lucratividade (tal como o que o sistema fiscal efectuou no período colonial). A outra, constituindo acumulação primitiva em termos de “stock”, implica uma transferência de activos dos camponeses a preços vis (“throwaway”), muitas vezes sem o seu consentimento, para corporações e desenvolvedores imobiliários para projetos de “infraestrutura” ou “industriais” (além das transferências que se verificam dentro da economia agrária para latifundiários). Mesmo quando é obtido consentimento, ele não é de todos os produtores dependentes de um lote de terra particular; a compensação não é paga igualmente a todos os produtores. Aqueles que são excluídos perdem evidentemente seus direitos sobre a terra em troca de nada (incluindo direitos costumeiros) e são as vítimas óbvias da acumulação primitiva em termos de “stock”.
Esta última questão tem sido muito discutida; vamos portanto concentrar-nos nela. Um certo número de medidas tomadas pelo regime dirigista para melhorar a resiliência e lucratividade da agricultura foi desfeito sob o regime neoliberal, esmagando o campesinato até o ponto em que mesmo a reprodução simples se torna impossível para grande número deles, resultando em suicídios de camponeses (mais de 200 mil na última década e meia). Entre estas estão: acabar o isolamento da agricultura camponesa das vicissitudes das flutuações de preços do mercado mundial que o dirigismo proporcionava por meio de tarifas e restrições quantitativas; colocar camponeses em contato direto com multinacionais do agro-negócio e corporações internas sem a almofada protetora do Estado; fazer subir preços de inputs através da retirada de subsídios do Estado, exigido pelo facto de que recursos orçamentais fluem cada vez mais para grandes corporações; reduzir a investigação e desenvolvimento agrícola em instituições públicas; terminar serviços públicos de extensão agrícola; cortes severos no investimento público na agricultura; uma retirada progressiva de crédito institucional para o sector de modo a que camponeses tenham de contrair empréstimos a taxas exorbitantes de uma classe de novos usurários; e privatização de serviços essenciais como educação e saúde o que os torna inacessíveis para trabalhadores rurais. Também se podem listar medidas semelhantes que afetam outros segmentos de pequenos produtores: pescadores, artesãos, fiadores e tecelões.
A acumulação primitiva de capital que destrói a pequena produção e liberta trabalhadores para o desemprego não teria provocado o sofrimento que provocou se aqueles “libertados” pela sua destruição houvessem sido absorvidos significativamente dentro do “exército de trabalho ativo”. Ele não o foram e a razão para isso está na remoção de outra restrição à “espontaneidade” que o dirigismo havia imposto, nomeado sobre o ritmo da mudança tecnológica e estrutural. Em consequência a taxa de crescimento da produtividade do trabalho tem sido tão alta que, apesar das taxas de crescimento aparentemente altas do PIB, a taxa de crescimento do emprego tem sido demasiado diminuta para absorver sequer o crescimento natural da força de trabalho, muito menos os pequenos produtores deslocados à procura de empregos. Certamente o crescente desemprego relativo provocado por isto não se manifestou como tal: ele assumiu a forma de uma proliferação de emprego precário, emprego em tempo parcial, emprego intermitente e desemprego disfarçados (muitas vezes camuflado como “micro empreendedorismo”). O racionamento de emprego em grande medida apagou a própria distinção entre exércitos de trabalho ativos e de reserva como entidades separadas. Isto por um lado resultou numa proliferação do lumpen proletariado e por outro numa estagnação ou mesmo declínio dos salários reais dos trabalhadores organizados.
Mesmo que tomemos o período 2004-05 a 2009-10 que supostamente testemunhou crescimento rápido do PIB e que limitemos a nossa atenção ao que o NSS chama de “status habitual” do emprego como um indicador aproximado do emprego correto, descobrimos que a taxa de crescimento de tal emprego foram uns meros 0,8 por cento ao ano, bem abaixo da taxa de crescimento da própria população (e portanto, aproximadamente, da força de trabalho natural) ainda que ignoremos os pequenos produtores deslocados à procura de emprego. Segue-se portanto que para os trabalhadores como um todo, incluindo trabalhadores agrícolas, camponeses e pequenos produtores e trabalhadores de colarinho não branco, tem havido uma deterioração absoluta das condições de vida reais sob o neoliberalismo. Isto se deve ao facto de que a característica essencial de um regime neoliberal é infligir um processo virulento de acumulação primitiva de capital numa situação de geração de emprego diminuta, o qual também foi exatamente o caso sob o regime colonial.
O paralelo com a crise agrária do período colonial fica sublinhado se olharmos os números da produção cerealífera. A produção líquida média anual per capita de cereais no quinquénio 1897-1902 foi de 201,1 quilogramas para a “Índia Britânica”, a qual declinou para 146,7 no quinquénio 1939-44 (os números subsequentes são afetados pela partição). Isto foi um declínio maciço, de mais de 25 por cento, o qual mostra a severidade da crise agrária. No entanto este declínio foi revertido e houve uma melhoria no período pós independência, até o início da “liberalização”: o número para a União Indiana como um todo ascendeu para 178,77 kg no triénio concluído em 1991-92. Contudo, o período da “liberalização” assistiu mais uma vez a um declínio: a produção cerealífera líquida anual per capita do triénio acabado em 2012-23 (a qual é comparável com a do triénio anterior) foi de 169,52 kg.
Significativamente, o declínio na disponibilidade líquida per capita de cereais também acompanhou este declínio da produção, o que demonstra a afirmação feita anteriormente acerca da deterioração das condições de vida dos trabalhadores como um todo. A produção líquida anual per capita de cereais, a qual é definida como produção líquida menos exportações líquidas menos acréscimos líquidos a stocks (embora por razões práticas só stocks do governo sejam considerados), ascendeu de 152,72 kg no quinquénio 1951-55 para 177 kg no quinquénio terminado em 1991-92. Para o triénio terminado em 2012-13, este número desceu para 172,1 kg.
DECLÍNIO DA ABSORÇÃO ALIMENTAR
Este declínio na absorção alimentar que estes números sugerem também é confirmado pelos números da ingestão de calorias per capita. A percentagem da população rural com acesso a menos de 2200 calorias por pessoa por dia (a qual é a referência para definir pobreza rural) aumentou de 58,5 em 1993-94 (o primeiro inquérito NSS do período de “liberalização” para 68 em 2011-12. A percentagem de população urbana com acesso a menos de 2100 calorias por pessoa por dia (a referência para definir pobreza urbana) aumentou de 57 em 1994-94 para 65 em 2011-12. Em termos de fome, a Índia agora classifica-se abaixo da África sub-Saariana e também no que a ONU chama “os países menos desenvolvidos” (“the least developed countries, LDCs”). O facto da fome crescente contradiz afirmações oficiais acerca do declínio da pobreza, mas isto não é surpreendente uma vez que as afirmações oficiais baseiam-se num método espúrio de estimar a pobreza. Este método define uma “linha de pobreza” para o ano base como um nível de referência da despesa (à qual as normas de calorias são cumpridas) e então atualiza-o para anos posteriores utilizando um índice de preços no consumidor a fim de estimar quantas pessoas caem abaixo desta linha. Tais índices de preços no consumidor, contudo, subestimam seriamente a inflação de preços real: eles não levam em conta o aumento no custo de vida devido à privatização de serviços essenciais como educação e cuidados de saúde.
A ascensão do PIB per capita numa situação de absoluta deterioração das condições de vida dos trabalhadores implica um aumento maciço da fatia do excedente no PIB, a qual explica o aumento extraordinário em desigualdades de rendimento e riqueza durante o período da liberalização, como é evidente por exemplo na ascensão do número de indianos bilionários. Ela também explica (num período em que a realização do excedente em ascensão não tem sido um problema devido ao boom) o enriquecimento visível de um segmento da classe média. O rendimento deste segmento é ou derivado diretamente deste excedente, exemplo, da sua despesa com consumo de luxo e de atividades associadas à sua extração, ou dependente do seu crescimento (o qual é o reino da finança). Além disso, a comutação de um conjunto de atividades tais como serviços relacionados com tecnologia de informação (IT) de países metropolitanos para a economia indiana, a qual faz parte de um fenómeno de transferência (“outsourcing”) para o terceiro mundo que caracteriza a era atual da globalização, também contribui para o seu crescimento. Entretanto, o crescimento deste segmento da classe média talvez seja menor em termos da sua dimensão numérica relativa do que em termos do seu rendimento relativo em relação ao trabalhadores.
Os ciclos de expansão (booms) sob o capitalismo neoliberal são tipicamente associados à formação de bolhas de preços de ativos. O prolongado boom capitalista mundial que foi sustentado primeiro pela “bolha dotcom” e a seguir pela “bolha habitacional” e que está subjacente ao boom do período de liberalização na economia indiana, chegou ao fim, sem novas bolhas à vista no futuro previsível. Os dias tranquilos do neoliberalismo estão acabados, o que portanto traz para a agenda histórica uma luta pela sua transcendência. Isto pode ser uma luta combinada, dos trabalhadores que têm sido suas vítimas, e de segmentos da classe média que até agora têm sido seus beneficiários mas atualmente estão à beira de tempos árduos. Mas precisamente por causa desta possibilidade, o capitalismo neoliberal também promoverá tendências fascistas e semi-fascistas a fim de dividir o povo. Reagir a estas tendências é o meio pelo qual a esquerda e as forças democráticas podem avançar.
[*] Economista, indiano, ver Wikipedia
O original encontra-se em
peoplesdemocracy.in/2016/0814_pd/logic-neo-liberal-capitalism . Tradução de JF.
Este artigo encontra-se em http://resistir.inf

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