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Março 2003: Discurso premonitório de Bachar al-Assad

17/8/2017,  Bachar al-Assad,Presidente da República Árabe Síria, Mondialisation.ca
(transcrito e traduzido do árabe ao francês, por Mouna Alno-Nakhal, texto aqui retraduzido)

No momento em que o mundo insiste na necessidade de evitarem-se as guerras que os EUA e Israel, sua aliada, desejam, visivelmente incapazes de fazer a paz e ainda muito menos dispostos a pagar o preço que a guerra cobra em vidas, essa intervenção do presidente Bachar al-Assad na Cúpula da Liga Árabe antes de os EUA invadirem o Iraque, dia 20/3/2003, merece difusão.

14 anos passados, esse discurso prova que muitos confiavam na capacidade de resistência dos povos do Levante, apesar dos governantes e apesar de sucessivas divisões sangrentas, mas que seria preciso que os árabes descobrissem quem são os verdadeiros inimigos, internos e externo, sob risco de parecerem fracos e desorientados aos olhos dos agentes da guerra e de grande maioria dos especialistas orientais ou orientalistas … [NdT árabe-inglês] (vídeo em árabe, sem legendas).

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Do que se trata?
1º/3/2003, Presidente Bachar al-Assad
Reunião de Cúpula da Liga Árabe, Charm al-Cheikh
(antes de o Iraque ser invadido pelos EUA)

Trata-se de controle, controlar o mundo e essa região, o que acaba dando no mesmo.

Trata-se de petróleo; o petróleo que é um dos instrumentos de controle desse mundo.

Trata-se de redesenhar os mapas como mais lhes convenham e naturalmente de tal modo que também passem a convir a Israel, que é outro aspecto do mesmo problema.

Trata-se de destruir as infraestruturas do Iraque, a começar pelos especialistas e professores. Quando digo infraestruturas, não falo das usinas, do mísseis ou de outros alvos a que eles se referem. O que querem é um país com coração que ainda palpite, mas o cérebro já não funcione. E querem isso para todos os árabes. Dito de outro modo, querem que vivamos num estado de letargia tal, que o cérebro não funcione, exceto quando eles ordenem e para fazer o que ordenem. E isso, claro, sem jamais dizer uma palavra sobre Israel, o que, me parece, todos já perceberam.

Quanto aos “inspetores”, foram os primeiros a não aceitar que voltassem, quando o Iraque já havia aceitado.

Quanto às “resoluções” do Conselho de Segurança da ONU, não acredito que haja qualquer país em todo o mundo que viole mais completa e repetidamente aquelas “resoluções”, que os EUA.

Quanto às “armas de destruição em massa”, se fossem efetivamente usadas contra os estados árabes, ou EUA exigiriam que se multiplicassem, não que fossem destruídas. Como se se preocupassem muito conosco… Como é possível que o Iraque os inquiete mais que Israel?! Quem assassina árabes? Iraque ou Israel? Quem mata cotidianamente os palestinos? Atualmente, são matanças que se contam às dezenas…

Não há dúvidas de que o arsenal do mundo árabe não ameaça os EUA nem qualquer outro continente. Sem dúvida, se pudessem tirar todas as armas de nossos países, não hesitariam, para que Israel pudesse continuar a atacar por terra e mar, matando o quanto queira, quem queira.

Quanto à “democracia”, se algum dos nossos líderes algum dia tivesse encarcerado 100 mil cidadãos por manifestações contra a política dos EUA, já seria comandante democrático de todo o mundo árabe e da região. Mas um só preso que tenha sido preso erradamente e que estava a soldo dos EUA, já converte qualquer árabe em antidemocrata ativo contra direitos humanos. Privar um cidadão palestino se seus direitos mais elementares, já transforma qualquer israelense em democrata favorável à paz, aos direitos humanos e a todos esses adjetivos que nada valem. O que significa que somos injustos com os EUA, quando falamos de dois pesos e duas medidas. Eles têm mil medidas, talvez mais.

O essencial é que decidiram deixar cair as máscaras, e admitem que se trata de uma questão de hegemonia. Alguns entre nós preferiríamos que os EUA cuidassem deles, e fingem que o problema seria “o regime” [iraquiano]. Também deixam cair as máscaras e nós as repomos no rosto de cada um! Quero dizer com isso que não devemos confundir a causa de uma pessoa, ou de um grupo de pessoas, com a causa de um povo. Ninguém no mundo, seja quem for, resumirá jamais em si mesmo toda uma pátria.

Por outro lado, não devemos confundir a situação Iraque-Kwait, com o caso do Iraque. A verdade não é nova, e eu mesmo já disse: o que se passa hoje é o prolongamento do que se passou em 1990, que foi desviado para nos ameaçar hoje precisamente no ponto em que estamos hoje.

É provável que alguns de nossos amigos árabes recusem essas minhas palavras, mas as convicções devem ser expostas sem floreios: em 1990 já apoiamos o Kwait contra da pretensões do Iraque – não contra o Iraque. Hoje, nos pomos ao lado do Iraque, como do Kwait, e nos oporemos a qualquer proposta que leve à destruição do Iraque.

Hoje, suponhamos, talvez exagerando um pouco, que alguns [dos nossos] estejam contra o regime [do Iraque] e outros estejam contra o Iraque, ou simplesmente indiferentes. Nessas condições e ao longo dessa reunião, poderíamos tomar a decisão clara e objetiva de derrubar o regime e de destruir o Iraque. Em seguida, informemos ao Iraque. No mínimo, estaríamos sendo mais honestos e misericordiosos do que os estrangeiros.

Claro que proposta assim extrema seria recusada. Mas sempre teria o mérito de expor a grave contradição entre (i) o que dizemos e repetimos sem cessar quanto a o quanto jamais admitiremos ingerências estrangeiras em assuntos interiores do Iraque e (ii) nossa oposição aos ataques, nos escondendo, ao mesmo tempo, por trás das posições que os EUA tomam.

Se temos alguma ideia precisa sobre isso, que a adotemos aqui, durante esse encontro. E se é nossa ideia, melhor encará-la, do que nos dissimular por trás de outros. Fato indiscutível é que é completamente impossível permanecermos suspensos entre essas duas águas.

Na verdade, em matéria de guerra, três fatores têm influência positiva ou negativa: o fator internacional, o fator regional e o fator local, nesse caso, o fator iraquiano.

Abstraindo-se o fator local, o fator internacional apoia-se sobre o fator regional. Se o fator regional enfraquece, o fator internacional “favorável à guerra” resulta reforçado, e vice-versa.

A força desse fator internacional é política, e a força do fator regional é política e “civil”, em todos os sentidos desse último termo: no sentido geográfico, demográfico, militar, etc.

Ora, esse fator “civil” é nosso ponto forte se o utilizamos com prudência para impedir a guerra, e é nosso ponto fraco no caso contrário, porque estamos na arena, como alvo no coração da guerra, exclusivamente como alvo, nada diferente disso.

Se nós não integrarmos perfeitamente essas equações, seremos duplamente responsáveis pelo que o futuro nos reserva.

Até aqui, o fator internacional tem operado melhor que nós, e nós nos contentamos com meras declarações. Até aqui não se viu nenhum trabalho árabe para impedir a guerra anunciada contra o Iraque, e estamos envolvidos eticamente, moralmente, nacionalmente, financeiramente, e temos de agir para acompanhar e garantir apoio ao fator internacional “que se opõe à guerra”. Sem isso, restará reconhecer que realizar ou não realizar essa reunião em que aqui estamos dá praticamente no mesmo, porque nos estaríamos comportando como estados sem poder e sem força.

O que devemos fazer?

Não cobrarei a ativação do acordo de defesa comum árabe e tampouco cobrarei a retirada das bases estrangeiras. Essas são questões de soberania, cada Estado traz quem bem entenda para seu território. Naturalmente, ninguém se sente tranquilo nessa situação. Mas nem por isso podemos nos imiscuir. Esse problema não é nosso.

Que as bases estrangeiras sejam resposta às angústias ou aos interesses dos Estados envolvido,  o que importa é que nenhum Estado tem o direito de estender a própria influência para além das próprias fronteiras, ainda que sejam forças amigas ou países irmãos. Se acontecer, o Estado passa a ser “Estado agressor” e terá de assumir completa responsabilidade pelo que aconteça.

Consequentemente, não podemos de modo algum facilitar o trânsito dos fatores que visam à guerra. Essa é a cláusula fundamental sobre a qual devemos trabalhar durante toda essa reunião. Essa cláusula determina nosso papel hoje e amanhã. Ao mesmo tempo, ela delimita o papel dos outros nos nossos assuntos. É o mínimo que temos de fazer, sem o que essa reunião será considerada, pelos povos árabes e pelo estrangeiro como a reunião para tentar salvar nossa consciência e tentar fugir de nossas reponsabilidades.

Infelizmente, alguns responsáveis já me disseram, a mim e a outros “Não podemos!” Quem diga que não pode admite que não pode decidir, e quem admita que não pode decidir admite que não é soberano.

De que cooperação estamos falando?

Partindo desse ponto, de que cooperação estamos falando, uma vez que há duas decisões, uma árabe, a outra não árabe? Podemos falar de cooperação árabe? Há cooperação, mas não árabe! E essa cooperação tem a ver com dois tipos de decisão, não de responsáveis.

Se essa cooperação resume-se aos responsáveis, nossas relações são boas e nossas identidades são provavelmente partilhadas. Por outro lado, quando se trata de cooperação entre minha decisão e uma decisão não árabe, não preciso absolutamente de intermediário. Nós podemos cooperar diretamente com o estrangeiro. E precisamos de uma decisão unânime sobre isso, hoje.

Com efeito, alguns propuseram que se envie uma delegação ao Iraque, o que levanta várias questões.

Em primeiro lugar: Essa delegação irá só ao Iraque, ou ao Iraque e aos EUA? Se for só ao Iraque, significa que o problema está no Iraque, nos EUA que querem guerra, com razão ou sem razão. Nossa mensagem será que o problema é o Iraque, não a aplicação das resoluções do Conselho de Segurança, nem a agressão contra o Iraque.

Em segundo lugar: O que nossa delegação pedirá ao Iraque? Pediremos que coopere, especialmente com a ONU? Nesse caso, pediremos o mesmo aos EUA, que se recusam absolutamente a cooperar e boicotam toda e qualquer resolução da ONU que dificulte a guerra que eles querem?

Em terceiro lugar: Qual a extensão dessa cooperação, dado que sabemos que os EUA sempre pedem concessões, mais concessões, mais concessões, e depois de terem obtido a centésima concessão, exigem que a outra parte volte para o ponto de partida, e recomeça o jogo?

É o que acontece hoje nas negociações deles com nossos amigos palestinos: uma concessão após a outra, sempre acusando os palestinos de nada terem concedido, e assim chegamos à situação presente.

Claro, esperamos que o Iraque coopere, mas temos de saber até onde irão, em vez de nos contentar com repetir o que nos dizem, dando a impressão de que marchamos ao lado deles, sem saber para onde estamos indo. Temos de saber o objetivo e a extensão da cooperação que desejam. Só então poderemos constituir nossa delegação no Iraque e discutir essas questões com os iraquianos.

Por outro lado, será o caso de nos posicionar a favor da tal cooperação? Quero dizer que, se os EUA dizem “[o Iraque] não cooperou, vamos à guerra”, poderemos nós dizer ao Iraque que coopere?! E se os “inspetores” declaram que o Iraque cooperou e que os resultados das pesquisas deles não podem servir de pretexto para a guerra, devemos nós nos calarmos?

Entendo que devemos considerar o aspecto positivo realizado, em grande parte, pelo Iraque; eventuais lacunas e detalhes podem ser acertados entre nós, como irmãos árabes capazes de discutir com franqueza.

Podemos talvez separar a questão iraquiana da questão palestina?

Um último aspecto da questão iraquiana é que essa questão é hoje inseparável da questão palestina. Nosso fracasso ao não dar conta da primeira significa nosso fracasso ao não conseguir resolver a segunda.

A guerra contra o Iraque, se acontecer, dará cobertura aos crimes de Israel. Não falo dos “crimes de Sharon”, porque creio que já disse antes de nossa reunião anterior, que todo israelense é um Sharon em potencial, o que se comprova hoje. Todos os israelenses matam palestinos continuadamente e exponencialmente.

Essa guerra servirá para encobrir os crimes de Israel e contornar a Intifada e a Resistência, para afinal chegar à imposição de uma paz nas condições que Israel deseje – e que todos nós recusamos. E é provável que leve também à divisão do Iraque, para que Israel se converta em Estado legítimo. Estado de uma só etnia, de uma só cor, pretensamente democrático, ganhará legitimidade política e social, se afinal conseguir criar vários miniestados semelhantes a ele, que lhe servirão de escudo!

Consequentemente, ao discutir o Iraque, não nos esqueçamos de nossos irmãos palestinos, não nos esqueçamos de reafirmar nossos direitos legítimos na Síria, no Líbano e na Palestina, bem como todas as Resoluções aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU relacionadas ao conjunto desses direitos, especialmente ao direito de reafirmar as fronteiras de 1967, que estabeleceram um Estado palestino com capital em Jerusalém, e o direito de retorno aos refugiados.

Não nos esqueçamos de reafirmar nosso apoio absoluto à Resistência, na forma que mais convenha aos resistentes. Como sempre, insistimos na importância de não haver nenhum tipo de cooperação com Israel. E assim será, até que Israel escolha engajar-se com a paz, não mais com a guerra – movimento do qual ninguém ainda viu qualquer indício.

Acolhemos favoravelmente a cooperação com a qual o Iraque consente. Proponho que reafirmemos nossa decisão de absolutamente não facilitar o caminho dos que querem guerra. [Fim da transcrição] *****

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