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sexta-feira, 29 março, 2024

No Chile, capitalização traz miséria

Por Felipe Bianchi e Leonardo Severo, de Santiago, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:
Economista formado na Universidade Católica do Chile, Marco Kremerman é representante da Fundação Sol – referência no debate sobre as Administradoras de Fundos de Pensão (AFP) – onde é pesquisador da área de Institucionalidade e Desenvolvimento. Kremerman recebeu a reportagem do ComunicaSul nesta sexta-feira (12), na sede da entidade, para falar das consequências da “privatização da Previdência pública chilena” e alertar os brasileiros para o descaminho, “em benefício de seis grandes companhias, na maior parte estrangeiras, que passam a multiplicar seus ganhos enquanto espalham a miséria em larga escala”.

Especialista em Relações do Trabalho na Universidade de Castilla-La Mancha (Espanha) e em Desenvolvimento Econômico no Centro de Formação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) em Turim (Itália), além de mestre pela Universidade de Bologna (Itália), Kremerman notabilizou-se pelos estudos nas áreas de educação, pobreza, desigualdade e trabalho.

Também foi assessor do Ministério do Trabalho e Previsão Social do Chile (2007-2010), consultor da OIT e da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco).

Trabalhador contribui, AFP lucra

Para nós, da Fundação Sol, o centro da questão é o trabalho e a Seguridade Social. Em um amplo processo de formação ao lado de organizações sociais e sindicais, temos estudado há muitos anos as consequências e os resultados do sistema de capitalização individual chileno.

É um sistema que existe em muito poucos países, cujo pilar contributivo para a aposentadoria está calcado, exclusivamente, em contas individuais, o que é um paradigma.

Alguns países, não muitos, privatizaram parte de seus sistemas de Previdência, mas são bem diferentes do sistema chileno, no qual 100% das contribuições feitas pelos trabalhadores e trabalhadoras vão para contas individuais.

Este sistema do Chile está fracassado. E este fracasso está se estendendo aos poucos países que, de 1981 até hoje, privatizaram parcialmente ou totalmente seus sistemas de Previdência. Isto é demonstrado no último informe da OIT: de 30 países que privatizaram parcial ou totalmente seus sistemas nas últimas três décadas, 18 voltaram para um sistema público devido ao completo fracasso da privatização.

No Chile, o fracasso é ostensivo. A maioria das pensões que se pagam são inferiores ao salário mínimo. São aposentadorias mais baixas que as de pessoas que se aposentaram quatro ou cinco anos atrás, porque o sistema simplesmente não permite que os cidadãos tenham uma realidade parecida à de quando contribuíam enquanto trabalhavam.

A promessa era de que as pessoas teriam uma taxa de retorno de até 80%. Ou seja, as pessoas teriam uma aposentadoria no valor de 80% do seu último salário. Na prática, o que acontece no Chile é que as pessoas aposentadas recebem menos de 20% deste valor, pois a rentabilidade fica com as AFP.

96% do PIB nas mãos dos especuladores

O sistema de Previdência chileno fracassou para os aposentados, pois entrega pensões miseráveis, mas é um tremendo êxito para os grandes grupos econômicos nacionais e internacionais que recebem esse fluxo de dinheiro.

Por quê? Pois hoje em dia, as AFP estão administrando cerca de 220 bilhões de dólares, o equivalente a cerca de 75% de toda a economia chilena, ou seja, do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Se somarmos a isso os recursos administrados pelas companhias de seguro, que oferecem outra modalidade de aposentadoria, estamos falando de cerca de 96% do PIB chileno – um montante administrado pelas AFP e pelas companhias de seguro. Os bancos nacionais e internacionais, grandes grupos econômicos, repassam cerca de 42% desse dinheiro ao estrangeiro. É um processo de acumulação por expropriação.

O que acontece é que, além do lucro, o capital, neste caso, abocanha também parte dos salários para acumulação, para enriquecer ainda mais. Não é à toa que 1% dos chilenos, os mais ricos, concentram 33% da renda do país, um dos números mais altos a nível mundial.

Desnacionalização da economia 

Os grupos transnacionais que participam deste negócio se beneficiam de duas maneiras. Em primeiro lugar, a maioria dos donos das seis AFP que operam no Chile – a partir de 15 de abril, serão sete – são companhias de seguro multinacionais. Estamos falando de três companhias de seguros dos Estados Unidos (Habitat, que operam US$ 57,7 bilhões; Provida, US$ 53 bilhões; e Cuprum, US$ 41,4 bilhões). Além delas, há a colombiana AFP Capital, que maneja US$ 40,6 bilhões, e a italiana Plan Vital, com US$ 7,2 bilhões. Há apenas uma empresa 100% chilena, que é a Modelo, cuja fatia corresponde à US$ 10,6 bilhões. A nova AFP que se incorporará agora, em abril de 2019, também será chilena.

O que significa isso? Que há um grande lobby do capital internacional entranhado no negócio das aposentadorias no Chile. Ao mesmo tempo, o negócio principal dos administradores de fundos de pensão é investir o dinheiro dos contribuintes. E é importante perguntarmos: aonde se investe esse dinheiro? Bem, perto de 43% dos 220 bilhões de dólares que administram as AFP, ou seja, cerca de 90 bilhões de dólares, deixam de ser investidos no Chile para serem investidos fora. Temos, então, um círculo virtuoso do grande capital mundial e transnacional, que impede e pressiona para que o Chile mantenha as coisas como estão e siga sem um sistema de Seguridade Social. O sistema que temos é um mercado de contas de poupança de contribuição obrigatória, o que está muito longe de ser um sistema de Seguridade Social e, sequer, um sistema misto.

Isto é muito doloroso, pois os cidadãos e cidadãs chilenos, quando chegam na idade de aposentar-se, precisam seguir trabalhando e estão geralmente endividados. A quantidade de aumento da inadimplência, do número de pessoas que não conseguem quitar suas dívidas, é extremamente alta na terceira idade, porque essas pessoas não têm renda suficiente para fazer frente às suas vidas, às suas necessidades.

A dinheirama do BTG Pactual 

O BTG Pactual [banco que tem vínculos históricos com o ministro da Economia de Bolsonaro, Paulo Guedes] recebe recursos diretamente dos fundos de pensão, pois o grupo tem um banco no Chile e conta com um fundo de investimento. As AFP podem investir em ações de empresas, bônus de dívidas de empresa, instrumentos financeiros vinculados a bancos e, também, em fundos de investimentos. Atualmente, as AFPs investem 1,13 bilhão de dólares em empresas do Grupo BTG Pactual e 6,158 bilhões de dólares no Itaú.

No Chile, existe o “retiro programado”: as pessoas, no momento de se aposentar, deixam todo o seu dinheiro com as AFP. As AFP seguem investindo esse dinheiro e pagando as pessoas. A outra modalidade é a renda vitalícia, na qual a pessoa, para não enfrentar os riscos do mercado financeiro, opta por uma aposentadoria mais estável. As pessoas transferem seus fundos para essas companhias de seguro e, neste mercado, também está presente a BTG Pactual.

Mídia responde aos interesses das AFP

Os meios de comunicação jogam um papel crucial no Chile. A maioria dos meios de comunicação de massa pertencem, justamente, aos principais grupos econômicos que existem no país. Os canais de televisão são controlados por grupos de muito poder. Os jornais diários são propriedade de dois grupos que construíram seu império, particularmente, durante as décadas de 1970 e 1980, ou seja, durante a ditadura, que são os donos do El Mercúrio e do La Tercera.

O nível de concentração é tão grande que existe apenas um único discurso. Todos falam a mesma coisa. Há muito pouco espaço para meios alternativos, pois a sobrevivência desses é muito custosa, o que impede o cidadão chileno de ter uma visão integral do que está acontecendo.

Outro fator é a publicidade. Por exemplo, as AFP se encontram presentes em todos os meios. Estão nos comerciais, nos programas de discussão política e até em algo tão próximo ao povo, como o futebol: o principal torneio nacional se chama Campeonato AFP PlanVital. Este é o nome do campeonato de futebol do Chile. O que é algo sintomático da força, da ingerência e do lobby das AFP. A mídia, que é o espaço onde se poderia fazer a crítica deste sistema, está totalmente cooptada.

É difícil que se levante, por parte dos meios de comunicação, uma análise crítica. Por exemplo, que tragam à tona o fato de que há um problema grave com a terceira idade no Chile, que sofre de abandono, de problemas econômicos, de suicídios…Diferente disso, o que a mídia diz é que o idoso chileno possui vitalidade, que pode e deseja trabalhar mais tempo. A agenda que há por trás disso é simples: que o idoso trabalhe mais, contribua mais com as AFP e que se paguem menos pensões. A mídia vende a imagem de que o chileno de 70 anos quer trabalhar mais, mas quem perguntou se querem?

* O Coletivo de Comunicação Colaborativa ComunicaSul está no Chile com os seguintes apoios: Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, Diálogos do Sul, Federação Única dos Petroleiros (FUP), Jornal Hora do Povo, Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, Sindicato dos Metroviários de São Paulo, CUT Chile e Sindicato Nacional dos Carteiros do Chile (Sinacar). A reprodução é livre, desde que citados os autores e apoios.

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