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domingo, 17 março, 2024

O Isolamento dos EUA, por Noam Chomsky

Noam Chomsky reflete sobre Israel, Trump e a Nova Ordem Mundial, uma aliança entre estados autoritários que se parece estar a estruturar.
Noam Chomsky, Esquerda.net
A 23 de dezembro de 2016, o Conselho de Segurança da ONU passou a Resolução 2334 por unanimidade, com a abstenção doa EUA. A Resolução reafirmou “que a política e práticas de Israel em estabelecer colonatos na Palestina e outros territórios Árabes ocupados desde 1967 não tem legitimidade legal e constitui uma séria obstrução para para alcançar uma paz justa e compreensiva no médio oriente. Chama novamente Israel, como país ocupante, a cumprir escrupulosamente a Quarta Convenção de Genebra (1949), a rescindir as medidas anteriores e a desistir de tomar qualquer ação que pudesse resultar numa alteração de estatuto legal ou natureza geográfica e afetar materialmente a composição demográfica dos territórios árabes ocupados desde 1967, incluindo Jerusalém, e, em particular, para não transferir parte da população civil para os territórios árabes ocupados.”

Reafirmou. Uma palavra com alguma importância.

É importante reconhecer que a Resolução 2334 não tem nada de novo. A citação aqui referida é da Resolução 446, de 12 de março de 1979, reiterada na essência na 2334. A Resolução 446 passou com 12 votos contra zero e abstenção dos EUA, do Reino Unido e da Noruega. A diferença essencial hoje é que os EUA estão sozinhos contra o resto do mundo, e isso é um mundo de diferença. As violações das ordens do Conselho de Segurança da ONU por parte de Israel, e violações da lei internacional, são hoje bastante mais radicais do que em 1979 e estão a levantar maior repúdio em boa parte do mundo. Os conteúdos da Resolução 446-2334 devem por isso ser levados mais seriamente. Daí a reação intensa contra a 2334, tanto a cobertura como o comentário; e em Israel e nos EUA, histeria considerável. Estes são indicadores evidentes do isolamento dos EUA no palco mundial. Sob Obama. Com Trump, o isolamento dos EUA irá provavelmente aumentar ainda mais, e de facto, já o fez, ainda antes de assumir a presidência.

A iniciativa de Trump que mais contribuiu para aprofundar o isolamento dos EUA aconteceu a 8 de novembro, quando ele ganhou duas vitórias. A vitória menor fois nos EUA, onde ganhou o colégio eleitoral. A vitória maior foi no Marraquexe – Marrocos, onde cerca de 200 nações estavam reunidas para tentar introduzir algum conteúdo nos acordos de Paris de dezembro de 2015 sobre alterações climáticas, acordos que foram deixados como intenções e não compromissos firmes devido à recusa do Congresso dominado pelo Partido Republicano.

Enquanto os votos eleitorais eram contados a 8 de novembro, a conferência em Marraquexe afastou-se do seu programa substantivo para a questão de saber se era sequer relevante lidar com uma severa ameaça de catástrofe ambiental agora que o país mais poderoso na história se demitiu das suas responsabilidades. Isso, seguramente, foi a maior vitória de Trump a 8 de novembro, um momento realmente pivotal. O mundo coloca as suas esperanças na liderança da China agora que o Líder do Mundo Livre declarou que não só irá se irá retirar dos acordos como, com a eleição de Trump, irá acelerar dramaticamente a corrida para o desastre.

Um espetáculo alucinante, que aconteceu quase sem qualquer comentário.
O facto de que os EUA estão sozinhos em rejeitar o consenso internacional reafirmado pela Resolução 2334, perdendo o Reino Unido sob a liderança de Theresa May, é outro sinal de crescente isolamento dos EUA.

Exatamente porque razão Obama escolheu a abstenção em vez do veto é uma questão em aberto: não temos provas diretas. Mas temos algumas explicações plausíveis. Tinha havido algumas reações de surpresa (e ridículo) após o veto de Obama em fevereiro de 2011 à Resolução da ONU que definia a implementação de política oficial dos EUA, e ele pode ter sentido que seria demasiado repetir um momento semelhante se quer salvar alguma parte do seu legado entre setores da população com alguma preocupação por direito internacional e direitos humanos. É útil relembrar que entre os Democratas liberais, por oposição ao Congresso, e particularmente entre os jovens, opinião sobre Israel e Palestina tem evoluído nos últimos anos para a crítica às políticas de Israel, de tal forma que o núcleo de apoio a Israel nos EUA transferiu-se para a extrema-direita, incluindo a base eleitoral evangélica do Partido Republicano. Talvez estes tenham sido os fatores que alteraram a posição de Obama.

A abstenção de 2016 suscitou furour em Israel e no Congresso dos EUA também, incluindo Republicanos e Democratas, com propostas para retirar o financiamento à ONU em retaliação pelo “crime”. O primeiro-ministro israelita Netanyahu denunciou Obama pelas suas ações “anti-Israel”. O seu gabinete acusou Obama de “manobrar” nos bastidores esta “emboscada” no Conselho de Segurança, produzindo “provas” que dificilmente poderão ser consideradas sequer humorísticas. O oficial israelita de topo acrescentou que a abstenção “revelou a verdadeira face da administração Obama”, e que “agora podemos compreender com o que estivemos a lidar nos últimos oito anos”.

A realidade é um pouco diferente. De facto, Obama ultrapassou todos os recordes no apoio a Israel, tanto diplomaticamente como financeiramente. A realidade é descrita com precisão pelo especialista do Financial Times no médio oriente, David Gardner: “As relações pessoais entre Obama e Netanyahu podem ter sido venenosas, mas ele foi o mais pró-Israel de todos os Presidentes dos EUA: o mais pródigo com ajuda militar e consistentemente utilizando o veto dos EUA no Conselho de Segurança… A eleição de Donald Trump até agora trouxe pouco mais do que tuítes virulentos sobre alguns assuntos geopolíticos. Mas os augúrios são ominosos. Um governo irredentista em Israel e inclinado para a extrema-direita é agora apoiado por uma administração populista e islamofóbica em Washington.”

Num comentário interessante e revelador, Netanyahu denunciou a “emboscada” do mundo como prova de “preconceito do velho mundo contra Israel”, uma frase reminiscente dos comentários de Donald Rumsfeld sobre a distinção entre a “Velha Europa – Nova Europa”, em 2003.

Devemos relembrar que os estados da Velha Europa era os maus, os principais estados europeus, que se derão à arrogância de respeitarem a esmagadora maioria da opinião das suas populações recusando juntar-se aos EUA no crime do século, a invasão do Iraque. Os estados da Nova Europa eram os bons, que ignoraram uma maioria de opinião ainda maior e obedeceram ao seu dono [os EUA]. O mais digno dos “bons” foi José Maria Aznar, primeiro-ministro de Espanha, que ignorou oposição popular unânime contra a guerra e foi recompensado com a honra de participar no anúncio da invasão em conjunto com Blair e Bush.

Esta demonstração transparente de total desprezo pela democracia passou virtualmente sem cobertura noticiosa, compreensivelmente. A tarefa na altura era glorificar Washington pela sua apaixonada dedicação pela democracia, como ilustrado pela “promoção da democracia” no Iraque, que subitamente se tornou na linha correcta após a “única questão relevante” (vai ou não Saddam entregar as armas de destruição maciça?) ter sido respondida no sentido inverso ao desejado.

Netanyahu está a adotar muito da mesma posição. O velho mundo que tem um preconceito contra Israel corresponde a todo o Conselho de Segurança da ONU; mais especificamente, corresponde a qualquer pessoa no mundo com o menor respeito por lei internacional e direitos humanos. Para sorte da extrema-direita israelita, isso exclui o Congresso dos EUA e – publicamente – o Presidente-eleito e os seus associados.

O governo israelita está, obviamente, consciente destes desenvolvimentos. Por isso, está ativamente a procurar transferir a sua base de apoio para estados autoritários como Singapura, China ou a Índia da direita nacionalista Hindu, que se torma agora um aliadoNATURAL com a sua deriva para o ultranacionalismo, políticas internas reacionárias, e ódio ao Islão.

As razões pelas quais Israel procura apoio são explicitadas por Mark Heller, principal analista associado em Tel Aviv no Instituto de Estudos de Segurança Nacional. “No longo prazo,” explica, “haverá problemas em Israel nas suas relações com a Europa ocidental e os EUA”, enquanto que em contraste, os países asiáticos importantes “não apresentam grande interesse na forma como Israel se relaciona com os Palestinianos, Áraves, ou quem quer que seja.” De forma breve, a China, Índia, Singapura e outros aliados favoritos são menos influenciados pelos tipos de liberalismo e preocupações humanas que representam uma ameaça crescente para Israel.

As tendências dos países em desenvolvimento merecem alguma atenção. Como notado, os EUA estão a tornar-se cada vez mais isolados nos últimos anos, quando sondagens dirigidas pelos EUA – não noticiadas nos EUA mas seguramente conhecidas em Washington – revelaram que a opinião mundial olhava para os EUA como a maior ameaça mundial à paz, ninguém sequer se aproximava. Sob Obama, os EUA estão agora sozinhos na abstenção sobre os colonatos israelitas, contra a unanimidade do Conselho de Segurança da ONU.

Com Trump e os seus apoiantes de ambos os partidos no Congresso, os EUA ficarão ainda mais isolados no mundo no apoio aos crimes israelitas. Desde 8 de novembro, os EUA isolaram-se no assunto ainda mais importante de aquecimento global. Se Trump cumpre a sua promessa de quebrar o acordo com o Irão, é provável que os outros participantes persistam, deixando os EUA ainda mais isolados em relação à Europa.

Os EUA estão igualmente mais isolados do seu “quintal” da América do Sul do que no passado, e estarão mais isolados se Trump recuar nos passos de normalização das relações com Cuba lançado por Obama, passos tomados para evitar a provável exclusão de todas as organizações do hemisfério por causa do seu assalto continuado a Cuba, em total isolamento internacional.

O mesmo se passa na ásia, onde mesmo aliados próximos dos EUA (exceto o Japão), mesmo o reino Unido, se juntam ao Banco de Desenvolvimento Asiático de Infraestruturas, com sede na China, e à Parceria Económica Regional liderada pela China e, neste caso, incluindo o Japão. A Organização de Cooperação de Shanghai (OCS) (chinesa igualmente) incorpora os estados centro-asiáticos, a Sibéria com os seus recursos, a Índia, o Paquistão e, mais tarde ou mais cedo, o Irão e mesmo a Turquia. A OCS tem rejeitado os pedidos dos EUA para obter estatuto de observador e exigiu que os EUA removam todas as suas bases militares da região.

Imediatamente após a eleição de Trump, testemunhámos o espetáculo curioso da Chanceler Angela Merkel a tomar a liderança numa lição a Washington sobre valores liberais e direitos humanos. Entretanto, desde 8 de novembro, o mundo olha para a China para liderança em salvar o mundo da catástrofe mundial, enquanto os EUA, em esplêndido isolamento novamente, se prepara para minar estes esforços.

O isolamento do EUA não está completo, obviamente. Como foi deixado claro na reação de Trump à vitória eleitoral, os EUA apoiam entusiasticamente a extrema-direita na Europa, incluindo elementos neo-fascistas. O retorno da extrema-direita em partes da América do Sul oferece oportunidades de aliança também. E, claro, os EUA mantêm uma aliança sólida com as ditaduras do Golfo e com Israel, que também se separa dos setores mais liberais e democráticos na Europa e se aproxima de regimes autoritários que não estão preocupados com as violações de Israel sobre lei internacional ou ataques ferozes a elementares direitos humanos.

Os últimos desenvolvimentos sugerem a emergência de uma Nova Ordem Mundial, totalmente diferente dos retratos usuais dentro das doutrinas em vigor.

Artigo publicado em ZNet(link is external), tradução do Esquerda.net

Créditos da foto: Flickr

 

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