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sexta-feira, 29 março, 2024

O show dos juízes obcecados

O filme A Conexão Francesa mostra como a mídia fabricou um herói de ocasião vendendo a imagem do juiz que ‘procura a vitória da Justiça contra o crime’.
Léa Maria Aarão Reis*
Marselha, 1975. Época de ouro da fascinante cidade que então cintilava com o brilho da droga consumida livremente. A máfia corsa se instalara nas entranhas da sociedade, da polícia e do Ministério Público e o temido padrinho napolitano Gaëtan ‘Tany’ Zampa comandava o esquema milionário do crime com ramificações nos Estados Unidos, o principal cliente. O porto da ‘capital mundial da heroína’ era o entreposto livre que recebia morfina da Turquia, processava a heroína e exportava a carga em containeres destinados ao porto de Nova Iorque sem que ‘Tany’ fosse molestado.

É nesse cenário que surge o juiz de instrução Pierre Michel, de 38 anos, vindo da cidade de Metz, antes  um juiz de menores e recém promovido a juiz do crime organizado.

Na cena inicial do filme A Conexão Francesa (La French Connection, de 2014*), inspirado no que se passou na realidade, durante fim da década de 70 e começo dos anos 80 nessa importante escala européia da droga (Marselha era praticamente governada pela máfia), fica claro que o conflito pivô da trama será entre o herói – o juiz – e o criminoso intocável que faz tremer até os investigadores.

“Quem ousaria dizer o nome de Zampa?” diz um agente policial. Duelo um pouco mais sofisticado que a disputa mortal entre mocinho e bandido dos texto_detalhes americanos.

Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos de Nixon se iniciava a ‘’guerra total contra as drogas’’ com a DEA, a Drug Enforcement Administration, a pleno vapor trabalhando com a justiça francesa.

Em certo momento do filme, um padrinho americano comenta, rindo, com o chefão napolitano, em uma conversa dentro de um carro rodando pelas ruas de Manhattan. ”Aqui, rapaz, todos consomem drogas. Jovens, velhos, marginais, gente honesta, estudantes, profissionais, até os policiais. E aos risos: “Depois os policiais querem nos prender, ora.”  

O juiz Michel chega para desmontar o mega esquema criminoso nesta produção franco-belga inspirada em fatos reais. Logo descobre que os assassinatos e os crimes de roubos, extorsão e chantagem de Zampa são difíceis ou impossíveis de provar. A unidade policial responsável pela investigação do tráfico de heroína, acomodada e liderada pelo capitão Aimé-Blanc nunca apresentava alguma coisa significativa para relatar.

Uma das principais figuras que chefia o esquadrão da divisão de narcóticos – Pierre Michel também constata – é o comissário Ange Mariette, líder de um bando de oficiais corsos corruptos que constam da folha de pagamento de Zampa. Sempre o avisam sobre o que rola nas investigações programadas.

La French Connection não é um filme empolgante do ponto de vista cinematográfico. A narrativa vai e volta, às vezes anda em círculos com situações já digeridas, clichês, e previsíveis sequências de perseguições, traições, mortes, contravenção.

Ele é precioso para (re)conhecermos a correlação do duelo desfechado por um juiz obcecado por punir e vencer a qualquer custo o mafioso napolitano, quarenta anos atrás, na França, e o que assistimos estarrecidos, na Justiça do  Brasil de hoje.

O juiz travestido de herói pela mídia acaba por sofrer um colapso emocional, a mulher o abandona e a sua obsessão – é quando o filme começa a ficar interessante – de deter Zampa o leva a entender que, para obter resultados, deve mudar seus métodos na cruzada contra a figura emblemática.

Zampa passa a ser para ele um desafeto. Vencê-lo se torna imperativo pessoal; não só o fruto da Justiça acionada.

À medida que a narrativa vai avançando, até mesmo o aspecto físico dos dois, o do juiz interpretado por Dujardin e o de Gaëtan (o ator Gilles Lellouche) começa a se assemelhar de tal modo sugerindo um jogo de espelhos, de alter egos, entre os dois. O bandido procura sobreviver e escapar da sanha do juiz temerário que ignora sua obrigatória imparcialidade para apanhá-lo através dos seus ‘métodos’: ações e vigilância ilegais.

“Prenda a todos. Mesmo que não haja nada contra eles,” ordena o magistrado ao grupo de agentes que saem para uma ação, se referindo aos criminosos.

“Não podemos prender com boatos, falatórios, fofocas, com o dizem que,” alertam os amigos. ‘’Você quer transformar Marselha em uma Suíça?’’

Durante os interrogatórios de testemunhas detidas para averiguação ele grita: ”Aqui você não temdireitos!”  E quando vai à Nova Iorque é festejado pelos agentes da DEA que o saúdam como o ‘’cowboy francês.”

Durante um interrogatório de mafioso a quem procura convencer a delatar o chefe, ele propõe: ”Você terá toda a proteção da Justiça se delatar. Mando você e sua mulher para o Canadá.”

Ápice da perseguição, neste ponto o duelo chegara à TV, na época o mais avançado canal de comunicação de massa disponível. A mídia fabricara um herói de ocasião vendendo a imagem do juiz impoluto, aquele que ‘’procura a vitória da Justiça contra o crime. ’’

Deslumbrado com a súbita notoriedade, Pierre Michel cede à sedução da fama e adota um dos lemas preferidos dos narcisos onipotentes que negam a realidade: “Nada é impossível.”

O filme do marselhês Cédric Jimenez contextualiza com mão leve o caso Pierre Michel. Refere-se à primeira vitória eleitoral de François Mitterrand, em 1981. Na sequência, o seu Ministro do Interior, Gastón Deferre, polêmico ex-prefeito de Marselha na ocasião, abrigara, como assessor, no seu gabinete da prefeitura, o irmão de um gangster do bando de Zampa.

Tempos depois, Deferre chegou a ser arrolado como testemunha em uma grande investigação sobre o caso do juiz Pierre Michel. Ao ser nomeado Ministro, ele prometeu ‘’mudanças realizáveis mais profundas’’ na Justiça. Contava com o panegírico da mídia: ”Ministros que não desistem diante de nada.”

Na caçada entre o juiz obcecado e o mafioso não houve vencedores. La French Connection finaliza anos antes de Gaëtan Zampa, na vida real, ser encontrado enforcado em sua cela, na prisão onde apodrecia.

Esta saga em Marselha do inicio da era da sociedade do espetáculo, como o escritor Guy Debord anteviu de modo brilhante, e por consequência o tempo da midiatização da Justiça e da manipulação da audiência da mídia massificada, das falsas notícias e do show de hipocrisia dos vazamentos dos depoimentos em audiências. A história dos juízes que perdem o contato com a realidade para entrar na dimensão do show. Engolfam-se na própria imagem. Passam a ser o acusador e fazem do poder de arbitrar perigosa caricatura. Perdem a serenidade, a humildade humana e se  investem de onipotência semidivina. São juízes que renegam sua formação que deve ser forçosamente humanista.

O apelido do juiz francês era ‘’o justiceiro’’. Como o de Curitiba.

*Jornalista

**O filme está disponível no Now.

Créditos da foto: reprodução

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