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sexta-feira, 29 março, 2024

Por que a riqueza dos bilionários cresce durante a pandemia?

Foto: Maria Oswalt/Unsplash

Por Bruno Mäder Lins/Le Monde Diplomatique

Uma breve explicação do conflito de classe escondido nas equações da economia

A “Grande Fome” foi o nome dado para um momento nunca esquecido na história pelo povo irlandes. Entre 1845 e 1849 a desnutrição na Irlanda resultou em doenças e emigração em massa – o período foi responsável por reduzir a população total do país entre 20% a 25%.

Thomas Malthus, o mais importante economista britânico da época, usou o caso para afirmar seu principal argumento econômico: é isso que devemos esperar que aconteça caso uma população cresça acima da oferta de comida.

Malthus estava preocupado com a nossa incapacidade de produzir mais alimentos. Mais especificamente, com a escassez de terras cultiváveis num momento de rápido crescimento populacional.

Além das terras serem limitadas, as últimas a serem cultivadas seriam as piores. Dentro dessa realidade, era preciso entender que a produção de alimentos seguiria um rendimento decrescente – paradigma muito utilizado por economistas hoje, pelo nome de “lei do rendimento decrescente”.

Para Malthus, a fome nos relembra como a humanidade não está totalmente livre de limites e leis naturais, e esquecer isso pode ser muito problemático, como expressa o exemplo da Irlanda. Segundo o economista: “o homem se multiplica igual ratos em um celeiro caso [ache que] tenha meios ilimitados de subsistência”.

Por isso, seriam duas as possíveis situações que o futuro nos reservaria: a reprodução populacional se adequaria gradualmente aos limites da oferta alimentar, ou a desnutrição e a fome grassariam como o último recurso da natureza.

O que críticas posteriores respodem a Malthus?

A história é contada e relembrada por Mary O’Sullivan, irlandesa e professora do Departamento de História, Economia e Sociedade da Universidade de Genebra, para que seus alunos nunca tomem por inquestionável aquilo que economistas afirmam como “leis econômicas ou limites naturais”.

Como sabemos hoje, a falta de alimentos na Irlanda da época não se deu por causa da incapacidade da produção local, como pressupunha a afirmação de Malthus. A questão é que o país exportava a maior parte da sua produção enquanto o povo passava fome.

Não era uma questão de capacidade produtiva, mas de distribuição. Quem fica com o que foi produzido? Não por acaso que posteriormente afirmou David Ricardo, quem sempre manteve conversas com Malthus, ser a distribuição o principal tema da economia.

A linha entre o que é um limite produtivo e uma questão de distribuição não foi apenas um problema específico à época de Malthus, mas é uma questão que enfrentamos até hoje, quando limites nos são afirmados a todo momento.

Mudaram os argumentos, não se justifica mais a escassez por causa da pouca quantidade de terras. Basta abrir as manchetes deste mês para encontrarmos novas justificativas: para os que defendem o teto de gastos, não há verbas para programas sociais. Ao mesmo tempo em que, sabemos, o Brasil retorna ao mapa da fome.

Economia, a ciência sombria

Assim como os economistas ortodoxos de hoje, o que caracteriza Malthus como um pensador de direita e conservador é o desprezo a uma realidade de injusta distribuição ao mesmo tempo em que sua análise enfatiza (supostos) limites.

Sendo o tema da distribuição irrelevante para o autor, e o limite da produção econômica a única variável explicativa, a culpa necessariamente recaía ao próprio povo irlândes: se multiplicaram para além dos limites produtivos de sua região? Morrerão em consequência.

Emancipação que não emancipa

Com o desenvolvimento tecnológico ficou cada vez mais absurda a defesa de limites à expansão da oferta: impossível afirmarmos na realidade produtiva de hoje a fome como consequência da escassez de terras disponíveis, como fizera Malthus, ou de alguma incapacidade tecnológica.

Não por acaso, esse foi o debate que dividiu a ciência econômica em duas distintas posições políticas: ortodoxia e heterodoxia. Entremos no tema expondo as perguntas por trás da cisão: o que impede hoje uma melhor distribuição? Ou ainda, o que atualmente justifica a escassez?

As (não) respostas dadas pela ortodoxia (ou economia mainstream)

Como Malthus no passado, para os economistas ortodoxos, conhecidos por serem a direita no debate econômico, a questão parece não ter grande relevância. Dão justificativas extremamente abstratas àquilo que supostamente limita a produção na atualidade. Já em relação ao tema da distribuição, apenas afirmam que o capitalismo naturalmente distribui sua produção de maneira justa.

Mais especificamente, a microeconomia afirma existir um aumento no “custo médio de longo prazo” que reduz o retorno por unidade e, consequentemente, novos investimentos na produção. Tais limites, segundo a teoria, são consequências do fim das vantagens de vender em larga escala, posto que, em algum momento, os suprimentos podem ser limitados, elevando seus custos. Ou por causa da dificuldade de se gerenciar empresas muito grandes.

Sobre os argumentos, o primeiro volta a reproduzir a lógica de Malthus, quando novamente afirma de maneira abstrata algum limite de insumo, enquanto o segundo ponto simplesmente observa existir uma linha imaginária na qual a divisão de trabalho deixa de ser eficiente.

A função Cobb-Douglas

A forma em que a ortodoxia trata o tema da distribuição na macroeconomia é ainda mais problemática. Desde Cobb-Douglas entendem o assunto como resolvido, uma vez que esses dois economistas mostraram que, nos Estados Unidos, os valores investidos em capital e trabalho eram iguais, e que tal relação se manteve constante entre 1899 a 1922.

Imagine que, na média, empresas invistam R$ 10 em capital e R$ 10 em salários, e que essa relação tenha se mantido razoavelmente constante entre 1899 e 1922. Pergunto: é possível concluir algo sobre o assunto “desigualdade” com esses dados?

A resposta é não. Muitas perguntas ainda ficam em aberto: quantas pessoas são proprietárias do capital? Qual é o número de trabalhadores dessa economia? Qual a variância entre os salários dessa economia? E entre os diversos detentores de capital?

A ortodoxia, porém, interpretou nesse gráfico – que não afirma nada além de uma certa paridade e estabilidade entre o que se investiu em mão-de-obra e capital, num período e país específico – uma prova de que o capitalismo é justo.

O que justifica tamanho “pulo do gato”?

A premissa do livre mercado. Concebido a priori, o postulado do livre mercado induziu a ortodoxia à seguinte conclusão: a razão entre investimento em capital e trabalho igual a 1 significa que os dois fatores estariam em perfeita competição. Sendo esse o caso, por dedução teórica, é possível concluir que vivemos uma realidade de justa distribuição.

Por incrível que pareça, é por esse paradigma que interpretam a desigualdade até hoje. Como afirmou Gregory Mankiw em 2007 “apesar das muitas mudanças na economia nas últimas quatro décadas, a divisão de renda ainda é facilmente explicada pela função de produção Cobb-Douglas”.

Livre mercado: ciência ou idealismo?

Para quem não é familiarizado com o tema, no limite do argumento, tal como defendido pela ortodoxia, a perfeita competição supõe perfeita paridade entre os agentes. Na prática, isso seria o mesmo que afirmar ser possível um flanelinha abrir um banco caso o setor bancário esteja praticando preços não competitivos.

Não apenas isso, outra derivação lógica provinda do paradigma da competição perfeita é que o lucro tende a zero. A lógica é simples, num mercado competitivo, produtores que lutam por uma maior parcela do mercado consumidor acabariam por reduzir o preço dos produtos vendidos ao seu valor de custo, o que terminaria por diminuir a receita de todos e levar o lucro do setor à zero.

Corrigindo uma teoria idealista, mas sem mexer no essencial

Se antes já era difícil defender a premissa da perfeita competição, um mundo nitidamente mais oligopolista, ou seja, cada vez mais dominado por poucas e grandes empresas, acabou por encurralar um pouco mais a ortodoxia nos tempos recentes. Diante da realidade empírica, o que fez a teoria mainstream?

Para não abandonar anos de desenvolvimento teórico, o mainstream apenas optou por adicionar o conceito de “fricção”. Ou seja, variáveis externas podem agora ser jogadas no esqueleto da perfeita competição para explicar alguma “falha de mercado”.

Permitiram, assim, que abrangentes e abstratas exceções sejam adicionadas, conquanto não se altere a premissa fundamental. Ao que importa, a ortodoxia econômica continua derivando posições políticas pela ótica da perfeita competição.

Mesmo erro histórico, novas carapuças? Saindo da armadilha ortodoxa

Ignorar uma realidade estruturalmente oligopolista não seria equivalente a repetir o mesmo erro de Malthus: desconsiderar, novamente, que a realidade é construída por injusta distribuição e injusta condição de oportunidade?

Para a heterodoxia, conhecida por ser a esquerda econômica, dizer que o capitalismo é competitivo, como afirmam os teóricos do livre mercado, é acreditar num bonito conto de fadas. Nossa sociedade é desigual e concentradora de renda. Mais do que isso, a concentração se reproduz e cria sua própria lógica, que torna refém de si tecnologias, democracias e ciências.

A economia pela lente da heterodoxia

Segundo essa perspectiva crítica, existe um descompasso entre uma sociedade que alcançou tamanha capacidade tecnológica, capaz de há muito tempo acabar com a fome, mas que ainda justifica e reproduz essa condição.

Não por acaso o economista Piero Sraffa apontou já em 1926 em texto intitulado “Leis dos rendimentos sob condições competitivas”, que não é a competição que caracteriza nossa sociedade, mas oligopólios.

Essa guinada é extremamente relevante para esse grupo de economistas, pois uma realidade oligopolista permite explicar uma relação desigual entre consumidores e produtores, em vez da falsa paridade postulada pelos defensores das teorias de livre mercado.

O que muda ao pensarmos a economia por oligopólios?

Oligopólio é sinônimo de privilégio. Mais especificamente, é quando empresas têm o privilégio de produzir sem se preocupar com muita concorrência. O que dá a esses produtores certo poder na formulação dos preços, que optam por cobrar mais caro para alcançar maiores lucros.

Diferentemente do livre mercado, que no longo prazo tenderia a igualar o preço final de um produto vendido ao seu custo num processo de redução dos lucros e aumento do consumo, o oligopólio, ao contrário, aumenta os lucros freando o consumo.

Como? Oligopólios reduzem seus custos ao propositalmente diminuir a quantidade produzida, e aumentam suas receitas ao elevar o preço de venda das poucas unidades produzidas. Ou seja, lucram vendendo caro aos poucos dispostos a pagar mais. Estruturas oligopolistas são, portanto, forças que reduzem o crescimento econômico e produzem escassez.

Quando a desigualdade passa a comandar a economia

Numa realidade em que o capital é a porta de acesso à produção, ou seja, em que apenas uma minoria ocupa a posição de “ofertar”, enquanto uma vasta maioria é subjugada à posição de “consumir” (em tempos de austeridade, nem isso), é no mínimo caricato afirmar a existência da perfeita competição.

Como bem defende a heterodoxia, ao contrário de exceções, lógicas oligopolistas são a regra – pensemos, por exemplo, no setor alimentício no qual 60% do mercado mundial é dominado por apenas dezoito empresas.

A regra que, enfim, permite à ciência econômica expor aquilo que a ortodoxia tanto luta para esconder: a quem interessa as atuais políticas de austeridade vastamente defendidas pelo neoliberalismo, que limitam a produção, o consumo e consequentemente o próprio crescimento econômico – tema econômico que detalhei melhor em artigo publicado em maio deste ano: “Quando a desigualdade passa a comandar a economia”.

As contradições de uma ciência idealista

Como vimos, Malthus justificou sua interpretação por afirmar limites naturais: terras são limitadas. A conclusão não é tão absurda se lembrarmos que o autor escreveu na época da revolução industrial, e não necessariamente sabia das possibilidades emancipatórias que ela construía. O mesmo não pode ser dito, porém, para quem reproduz o erro hoje.

A farsa de alguma maneira ou de outra, pelo menos, se escancara. Postular perfeita competição num mundo desigual e injusto requer praticar enorme inversão. Não por acaso, contradições entre realidade e discurso estão em toda parte.

Nos afirmam, por exemplo, que a economia serve ao consumidor, porém, pré-configuram a destruição de nossos aparelhos eletrônicos com a obsolescência programada.

Postulam que a economia é uma lógica de livre mercado mesmo quando a produção é nitidamente regida por poucos – sendo, por exemplo, o principal setor energético escancaradamente regido pelo cartel da Opep.

Afirmam (os economistas ortodoxos) visar o bem social, mas criam políticas que destroem o consumo das famílias e a demanda agregada: a austeridade terminou por naturalizar crescimento apenas aos de cima, crise aos de baixo.

À guisa de conclusão

Como a crise de 2008, a atual pandemia novamente expõe que o real fundamento de nossa sociedade é a injusta divisão de propriedade e renda, ou seja, a estrutura oligopolista.

Portanto, que pelo menos não nos surpreenda lermos que a riqueza dos bilionários cresceu nos últimos meses, ao mesmo tempo em que a vasta maioria apenas perdeu renda: na estrutura econômica de hoje, quando o dinheiro para de circular, ele para na mão de seus (poucos) proprietários.

Já aos que se interessam pelo assunto e buscam, por exemplo, compreender as estranhas políticas neoliberais intensificadas no final do século XX e início do século XXI, que resultaram no baixo crescimento estrutural das principais economias do Ocidente, a lição que fica é que nem o almejado crescimento econômico escapa das lógicas intrínsecas à reprodução da desigualdade.

Trazendo uma economia para os dilemas do nosso tempo

Para entrarmos na ordem do dia e organizarmos uma economia que realmente atenda os desafios de nossa geração, precisamos, como sociedade, alcançar uma difícil dupla vitória.

A primeira requer entendermos que os limites que hoje inibem a nossa emancipação material não são limites tecnológicos, organizacionais ou de insumos, mas promovidos pela histórica inércia da desigualdade, que conseguiu gerir ciências, políticas econômicas e democracias a serviço de sua reprodução.

A segunda é combatermos o atual capitalismo oligopolista, que não apenas divide injustamente, mas também produz propositalmente menos, uma vez que depende da manutenção da escassez.

Ou seja, é preciso reconhecermos a ironia de uma economia que afirma os mais diversos e abstratos limites quando o assunto é política social aos de baixo, mas que ignora a principal fronteira de nossa época: a crise ambiental.

Libertos de tais amarras, compreenderíamos de maneira justa o real potencial produtivo que alcançamos, tanto quanto a nossa real capacidade de consumir sem prejudicar o meio ambiente. Para, por fim, reduzirmos e eliminarmos qualquer consumo que ainda exista de forma nociva à manutenção do ecossistema global.

Há, porém, uma luz no final do túnel. A primeira vitória pavimenta o caminho da segunda. Se livrar da cortina ideológica é, na verdade, muito mais do que meio caminho andado. Uma vez que é importante reconhecer: já alcançamos grande parte da tecnologia necessária para superarmos a crise ambiental.

Fica por último a questão, como escapar desse enorme descompasso entre as possibilidades tecnológicas já alcançadas e os freios ideológicos que ainda constroem nosso estilo de vida e instituições?

Difícil pergunta, não deixa de ser um começo, porém, acabarmos de vez com as dúvidas sobre a “falta de recursos” e tantos outros falsos limites que nos rodeiam. É preciso criar uma macroeconomia para todos, que inclua as minorias, o meio ambiente e os países periféricos.

*Bruno Mäder Lins é cientista social formado na USP e mestrando em Política Econômica na Universidade de Genebra.

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