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quinta-feira, 28 março, 2024

Questões chave para entender a situação venezuelana (II)

– A primeira parte encontra-se aqui

por Maria Páez Victor [*]
entrevistada por Mohsen Abdelmoumen

Mohsen Abdelmoumen: Temos informações acerca da presença de elementos terroristas do Daech para serem usados contra o que resta dos governos progressistas da América Latina, como por exemplo a Venezuela. Tem informações sobre isso? 

Não tenho qualquer informação pessoal, apenas o que me têm dito pessoas ao longo da fronteira com a Colômbia: o perigo de contínuas incursões de paramilitares, o assassinato de líderes comunitários por estes assassinos pagos e o flagrante contrabando organizado que nessa região tem ocorrido.

A Colômbia tem uma terrível história de violência, assassinatos e massacres. Na semana passada, valas comuns com 9 mil corpos foram encontradas nesse país. A cooperação do exército colombiano com paramilitares, máfias e narcotraficantes é mais que conhecida. Com sete bases militares americanas na Colômbia, é bastante improvável que não haja planos para desencadear o terror na Venezuela e para derrubar o governo. De acordo com o presidente colombiano Santos, 3 mil soldados colombianos estão sendo enviados para a fronteira, prontos para uma intervenção de “ajuda humanitária” na Venezuela. Trata-se de uma invasão, haverá uma guerra em grande escala que vai destruir a região.

Uma notícia importante que a imprensa mundial se recusou a publicar foi que o relator oficial independente das Nações Unidas, o Professor Alfred M. Zayas, disse há algumas semanas: que não havia qualquer “crise humanitária” na Venezuela apesar de relatórios e generalizações. “A população não sofre de fome, como em muitos países da África e Ásia – ou mesmo nas favelas de São Paulo e outras áreas urbanas do Brasil e outros países da América Latina.(…) A ‘crise humanitária’ pode ser facilmente explorada para justificar uma “mudança de regime”, sob o pretexto de que o governo deixa as pessoas morrerem de fome. Alguns Estados dizem que o governo venezuelano já não é capaz de garantir os direitos do povo. Em consequência, surgiu uma crise humanitária, e agora eles querem intervir militarmente para “salvar” o povo venezuelano de uma experiência socialista fracassada”(venezuelanalysis.com/analysis/13614)

Entrevistei S.Exa. o embaixador da Venezuela para a Bélgica e a União Europeia, a senhora deputada Cláudia Salerno Caldera, e perguntei-lhe acerca da possibilidade de uma intervenção militar americana na Venezuela. Ela respondeu-me afirmativamente. Acha que os EUA podem intervir militarmente contra o governo legítimo do Presidente Maduro? 

Com um tal desequilibrado na Casa Branca, toda imprudência é possível. No entanto, acho que eles usariam tropas colombianas e talvez do Brasil e da Guiana. Por que arriscariam seus próprios soldados quando têm carne para canhão à sua disposição em governos tão gananciosos e envilecidos?

No entanto, a Colômbia tem eleições presidenciais em 27 de maio, ou sete dias após as eleições venezuelanas (20 de maio). Isto significa que o governo colombiano não pode invadir a Venezuela antes dessa data, por medo de por em risco a sua campanha eleitoral, o que não seria bom para o governo. Da mesma forma, existem milhões de colombianos favoráveis à Venezuela que tem tratado bem seus compatriotas, dois milhões vivem lá agora. Assim, uma incursão colombiana dentro da Venezuela também pode causar graves problemas internos para o governo, o que certamente impediu a Colômbia de entrar a Venezuela durante todos estes anos.

O exército colombiano tem três vezes o tamanho do exército venezuelano. Tem experiência de guerra porque luta contra guerrilhas desde há 50 anos, tem recursos e armas através das sete bases militares dos EUA ali existentes. No entanto, é em grande parte um exército desmoralizado que não tem um quarto da moral e determinação do exército da Venezuela, o exército de Bolívar. E qualquer pessoa familiarizada com assuntos militares lhe dirá que a moral de um exército é essencial para o êxito. Além disso, a Venezuela tem um povo unido, inspirado e orgulhoso que defenderá ferozmente a sua terra.

O governo venezuelano não está sozinho. Ele tem o apoio de muitos países não-alinhados e não menos importantes, China e Rússia, a maior parte do Caribe, incluindo, claro, Cuba. Tanto a Rússia como a China advertiram os EUA para não interferir no governo da Venezuela. Seus investimentos na Venezuela são substanciais e não estão dispostos a ver a Venezuela invadida. Esses investimentos são muito bem-vindos pelos países latino-americanos, porque não vêm com “condições restritivas” políticas, tais como os do FMI e do Banco Mundial. Eles são outro problema penoso para os Estados Unidos.

Como explica as sanções que os Estados Unidos e União Europeia querem impor ao governo legítimo do Presidente Maduro? 

As sanções dos EUA fazem parte de sua guerra económica contra a Venezuela. São uma violação do direito internacional: são contra as cartas das Nações Unidas e da OEA [Organização dos Estados Americanos], contra o Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos e o Pacto Internacional sobre os direitos económicos, civis e culturais e constituem um crime contra a humanidade, porque criam intencionalmente o sofrimento do povo. Em suma, elas são imorais porque impedem o país de comprar alimentação e medicamentos.

Os governos europeus e o canadiano vergam-se vergonhosamente perante o presidente mais ignorante e mais venal da história dos Estados Unidos. A Venezuela nada significa para aqueles países, assim pensam eles: “Deixemos Trump com as suas loucuras e deixemos-lhe a Venezuela. Estas sanções não nos afectam em nada, e talvez consigamos obter o lado “bom” de Trump”. Pateticamente, acham que ele tem um lado bom. O Canadá dá-se a um trabalho insano apelando a Trump para que não lance o acordo NAFTA no lixo [1] e a União Europeia ainda pensa que o Trump é um aliado respeitável. Poderíamos esperar que governos favoráveis aos Estados Unidos, como os da UE, tentassem influenciar o presidente inexperiente e errático dos EUA no sentido de uma coexistência pacífica com os outros países. Eles deveriam ensinar-lhe dignidade e correcção para com as Nações do Caribe ao invés de cumprimentar o bruto com palmadas nas costas.

Na sua opinião o imperialismo dos EUA e seus lacaios irão algum dia cessar de desestabilizar países e impor seus ditames aos povos? 

A curto prazo, com esta administração Trump, não. No entanto, a longo prazo, quando o seu défice de vários milhares de milhões de dólares finalmente bater na parede eles verão que o dólar não é mais a moeda universal do comércio, então poderiam abrandar a sua agressividade, porque seus problemas domésticos serão prioritários, ao invés para tentar dominar outras terras. O que eu quero para o povo dos Estados Unidos é um líder, um partido e um governo que cuide de suas necessidades em educação, saúde e habitação, que perceba que ser polícia do mundo não vale o sofrimento do seu povo e que com a cooperação e solidariedade com os povos do mundo irão colher muitas riquezas de que ignoram a existência. Para isso, eles devem chegar à conclusão de que o seu complexo militar-industrial só lhes tem trazido o mal, a depressão, a pobreza, a morte e o desprezo da maior parte do mundo.

Fiquei muito impressionada por Bernie Sanders ter sido capaz de atrair os jovens de uma maneira política significativa e com o fato de ter tornado a palavra socialismo aceitável da na cena política americana – é uma façanha! [2] Então talvez ainda haja esperança para os Estados Unidos ?– e para o mundo.

Que resta de credibilidade para esses meios de comunicação ao serviço do imperialismo que são financiados por empresas multinacionais e que gastam o seu tempo não a contar a verdade, mas a difundir lavagem cerebral e veicular propaganda do imperialismo para remover poderes políticos legítimos como o do Presidente Maduro? 

Não é um problema complicado, bastaria que governos suficientemente corajosos desmantelassem os grandes grupos de media, proibissem estes monopólios. Se isto acontecer, teremos em muitos meios de comunicação pensadores independentes, jornalismo criativo e, finalmente, uma imprensa que tenha verdadeiras normas. Por outras palavras, precisamos de democratizar a imprensa, dissociando-a das grandes empresas, dos Murdoch e outros deste mundo. Quando muito poucas pessoas são proprietárias de jornais, televisões e rádios, quando são as grandes empresas quem decide o que podemos ouvir e aprender, tornamo-nos escravos das suas falsas informações e inverdades para benefício de seus Interesses económicos e políticos. Somos confrontados com vagas noções do “direito de informação” e “liberdade de imprensa’ que funcionam num só sentido.

A Venezuela foi claramente vítima de uma campanha dos media de mentiras e exageros denegrindo um governo que o Departamento de Estado dos EUA quer destruir. Assim, histórias como “os venezuelanos comendo animais do jardim zoológico”, “pessoas matando cavalos”, “mães abandonando filhos à beira da estrada”, “pessoas a morrerem de desnutrição”, “povos indígenas aprendem árabe” (como se fosse um crime),”Maduro quer ser Presidente perpétuo”, são tudo mentiras elaboradas e apresentadas como factos.

Quando Presidente Chávez confrontou a oposição aberta e militante do principal canal de televisão e rádio de seu país, que é propriedade privada, ele não a fechou (como um ditador teria feito). Ele forneceu os meios para que centenas de bairros pobres e conselhos comunais estabelecessem as suas próprias estações de rádio locais e até mesmo estações de televisão, onde as pessoas poderiam expressar suas próprias preocupações, criar os seus próprios programas que realmente lhes interessassem. Foi uma maneira de democratizar os media. Eles não são meios de comunicação controlados pelo governo, são media comunitários muito independentes, com efeito, eles não hesitam em criticar e apontar as deficiências da administração.

O imperialismo dos EUA e seus aliados continuam a encher-nos com “direitos humanos”, “democracia” e “liberdade de expressão”, enquanto fazem o inverso desestabilizando países e intervindo em toda parte do mundo. Como classificaria estes atos hostis que visam Estados soberanos? Na sua opinião, são os Estados Unidos uma verdadeira democracia, onde as pessoas têm o poder, ou talvez seja pelo contrário uma minoria que os dirige? 

No Canadá, recebemos, sem ser solicitado, o New York Times, junto com a edição de domingo de um dos nossos principais jornais. Desde então, estou chocada com as mentiras do NYT sobre a Venezuela, a única parte que leio é o seu suplemento do Sunday Book Review. Há uma semana, eles passaram em revista quatro livros, todos eles com uma variante do título: “o que há de errado com a democracia nos EUA”. Assim, não são apenas alguns de nós fora dos Estados Unidos, que assistem à deterioração constante da sua vida social e política, mas pessoas inteligentes e habituadas a reflectir dos próprios EUA que verificam e sentem esta deterioração.

O ídolo da guerra impregna a sociedade estado-unidense, com guerras de conquista, bombas, drones, prisões secretas, aceitação da tortura, tratamento revoltante para com negros e hispânicos, posição predatória face à natureza, cultura de armas de fogo, recorde vergonhoso de prisões, fraca participação eleitoral, massacres com armas de fogo, indústria de armamento, violência e indústria do entretenimento obcecada pelo sexo, tudo isto corrói pouco a pouco o que há de são, de positivo, os ideais de vida que podem existir no imaginário colectivo e nos desejos dos cidadãos americanos. Sua democracia e a própria estrutura da sua vida social como nação, é um objecto de preocupação, mesmo para os seus cidadãos. Os Estados Unidos chegaram a uma encruzilhada onde devem escolher entre um estilo de vida que adora a morte e a conquista ou o de pessoas que amam a Vida e a Paz.

A situação é grave. Eu sou argelino e meu país que é um aliado da Venezuela é visado por vários círculos ocultos relacionados com o imperialismo. Acha que países como a Argélia, Venezuela, Cuba, etc devem formar uma frente comum, mais do que nunca necessária para a preservação de sua soberania? Não haverá necessidade de uma frente global contra o imperialismo? 

Absolutamente e não se pense que isso não acontece. A Venezuela tem cultivado fortes laços com Cuba, Bolívia, Nicarágua, países das Caraíbas, muitos países africanos e ex-soviéticos, a Argélia e outros países árabes, a Índia, a China e a Rússia. Veja os votos na ONU e na OEA onde os Estados Unidos não conseguiram condenar a Venezuela porque não obtêm suficientes votos.

Há poucos dias o novo embaixador dos Estados Unidos junto à OEA, Carlos Trujillo, ameaçou com a maior arrogância os países das Caraíbas pelo seu apoio à Venezuela: ” não permitiremos que o Caribe bloqueie os esforços da maioria dos países da região para pressionar o governo da Venezuela.” (apporea.com, 18/05/2018).

Há força na unidade e estes países partilham desafios semelhantes e enfrentam praticamente os mesmos inimigos. A organização ALBA é um excelente exemplo de solidariedade internacional criativa, em que países se reúnem para produzir os medicamentos que necessitam, promover a agricultura para consumo interno e responder às suas necessidades em educação.

A Petrocaribe é outro exemplo de solidariedade internacional criativa em que o petróleo venezuelano está disponível para os pequenos países das Caraíbas sob condições especiais. Desejaria que existissem mais organizações como ALBA e Petrocaribe.

Israel continua a matar palestinos, especialmente durante as recentes manifestações exigindo o direito de retorno. Como é que Israel permanece sem punição pelos muitos crimes que continua a cometer? 

Não tenho qualquer ideia concreta sobre o Médio Oriente, não sei árabe, pessoalmente, não conheço a área, não tenho mais informação do que a que leio nos meios de comunicação. E sou muito cautelosa com o que há para ler: se a imprensa mente sobre a América Latina de que sei muitas coisas, por que não mentiria sobre uma região que sei tão pouco?

No entanto, minha opinião pessoal e de maneira alguma a de um especialista, ou se mata um seu inimigo ou se senta com ele e se negoceia. Não há meio-termo. Violência gera violência e é um truísmo sábio. Os palestinos têm sofrido desde há muito tempo por parte de um vizinho muito poderoso. Desculpe-me, mas não sei o suficiente sobre a situação para dar um sentido mais profundo, excepto que uma solução de dois Estados parece ser o que pode trazer a paz com justiça. E em Israel, o movimento pela paz deve ser um elemento-chave desta solução política para exercer pressão sobre o seu próprio governo.

Como explica que sempre que membros da resistência e justos apoiem a causa do povo palestiniano sejam chamados de anti-semitas? 

É uma injuria muito perigosa de lançar, pois todos sabemos das mortes terríveis e destruição que verdadeiros anti-semitas cometeram historicamente na Europa. Do outro lado, há pessoas que acusam os outros de serem sionistas, quando eles discordam sobre um ponto de que não gostam. Estes são insultos ad hominem que os medíocres usam quando não têm mais argumentos. Numa situação polarizada, estes insultos não ajudam ninguém e não contribuem para encontrar soluções, são completamente desprezíveis. Vivemos numa época onde – impensavelmente – fascistas se levantam em todos os tipos de países, charlatões políticos zombam de valores que achávamos serem universalmente assumidos, um tempo para tweets irresponsáveis, dos email desprezíveis, projeções de lama sem se preocuparem onde caiem e um jornalismo medíocre e sem discernimento. Mas temos de levantar-nos acima de tudo isto, manter os nossos princípios e os nossos valores, recusar jogar seus jogos sujos, dar o exemplo e preservar a nossa própria dignidade. 

NR

[1] Até seria uma boa ideia acabar com o NAFTA, que foi e é desastroso para povo mexicano.

[2] Mas Bernie Sanders nunca foi um socialista e sim um social-democrata. Ele já fez publicamente declarações agressivas contra a Venezuela, o Presidente Chavez e o movimento bolivariano.

A primeira parte desta entrevista-se encontra-se em resistir.info/desestabilizacao_parte_1.html

[*] Socióloga, venezuelana, doutorada em sociologia pela Universidade de York, Toronto, Canadá. Lecionou sociologia da saúde e da medicina bem como políticas de saúde e ambiente na Universidade de Toronto. É membro ativo da comunidade latino-americana no Canadá.

O original encontra-se em mohsenabdelmoumen.wordpress.com/…

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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