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quinta-feira, 28 março, 2024

Veto militar a Lula é um risco para o país

Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

Ao colocar as Forças Armadas no papel de guarda armada da Operação Lava Jato, o general Villas Boas compromete a função da instituição num regime democrático e prepara uma armadilha para o futuro dos militares brasileiros.

O veto a Lula representa um retorno ao projeto tacanho e autoritário de várias gerações de comandantes militares que tiveram um triste papel em nossa história política. Tentaram impedir a candidatura de Juscelino em 1955 e a posse de Jango em 1961, quando colocaram o país às portas de uma guerra civil. Organizaram o golpe de 64, pressionaram pelo AI-5 em dezembro de 1968 e, como se não fosse suficiente, em 1969 assumiram o governo num golpe dentro do golpe, entrando para o anedotário com o apelido divertido e corajoso de Três Patetas, criado por Ulysses Guimarães, primeira liderança civil da redemocratização.

Ao se engajar a fundo na defesa de uma medida que fere os princípios democráticos, insulta uma parcela crescente de brasileiros e compromete a presença do país no cenário internacional, Villas Boas compromete as Forças Armadas num escândalo jurídico-político comparável ao caso Dreyfus, que mobilizou a França no início do século XX e marcou a luta pelos valores democráticos em nosso tempo. A postura de Vilas Boas pode até lhe valer gestos interesseiros de simpatia e reverência, mas está condenada pela experiência histórica que envolve a luta universal entre democracias e ditaduras.

Neste ponto, o caso Dreyfus é exemplar. Assim como ocorreu com Lula e o triplex do Guarujá, a denúncia de que Alfred Dreyfus, o capitão do Exército francês, repassava informações estratégicas ao Exército Alemão nunca foi provada com documentos, apenas por delações sem sustentação real e documentos forjados, que prosperavam com facilidade num ambiente político envenenado. Em mais um ponto de contato com o Brasil de nossos dias, na França daquele momento a lembrança da Comuna de Paris sinalizava a energia adquirida pela luta dos trabalhadores. O comando do Exército era dominado por oficiais conservadores, boa parte abertamente empenhada em derrubar a República e restaurar a Monarquia. Nesse processo, utilizava-se de um preconceito arraigado e de fácil apelo popular, o anti-semitismo, para alimentar mobilizações contra a democracia.\

Alvejado por uma imprensa abertamente preconceituosa, Alfred Dreyfus era um alvo perfeito — não só era judeu, mas de família rica e próspera.

Quando surgiram provas irrespondíveis de sua inocência, ocorreram cenas que, um século e duas décadas depois, os brasileiros podem reconhecer muito bem. Colocou-se em movimento uma engrenajagem para garantir que Dreyfus fosse mantido preso de qualquer maneira — desterrado na Ilha do Diabo, Guyana francesa, onde cumpria pena algemado, sob o sol do Equador.

Numa situação que guarda semelhanças óbvias com os contratos da Caixa que mostram que Lula nunca foi dono do imóvel que teria recebido como propina, documentos que provavam a inocência de Dreyfus, e até demonstravam quem era o oficial envolvido na espionagem a favor do inimigo, também foram deixados de lado. Num sinal de que a justiça operava com um lado pré-definido e não pretendia mudar o rumo das investigações, o oficial de informações que descobriu as provas que inocentavam Dreyfus foi neutralizado e punido, sendo enviado para um posto remoto na África. Desmascarado, um dos responsáveis pela fraude suicidou-se.

Em função de evidencias a seu favor que chegavam aos poucos jornais que ousavam desafiar a versão oficial, ganhando imenso prestígio em função dessa postura, após quatro anos de prisão Dreyfus conseguiu um novo julgamento. Num esforço para sustentar o que já se mostrava juridicamente insustentável, um tribunal militar reconheceu que o caso apresentava “circunstâncias atenuantes” mas manteve a condenação: mais dez anos de prisão. Dez dias depois, no entanto, um acordo político permitiu que Dreyfus recebesse um indulto, expressão possível de Justiça nas circunstâncias.

O caso teria sido um erro judiciário grave, que ocorre vez por outra na história de povos e países, se o Estado-Maior do Exército francês não tivesse assumido a punição a Dreyfus como uma causa sua, afundando um pouco mais toda vez que encobria um erro, um deslize e mesmo uma falcatrua, em vez de acatar uma postura constitucional de submissão aos poderes civis, fronteira da democracia em qualquer parte. Foi ali que nasceram as grandes linhagens ideológicas das Forças Armadas do país, que iriam se manifestar ao longo do século passado.

Este processo ajudar a entender a baderna política que fez do Exército francês um alvo fácil para as tropas de Hitler — inclusive a traição de Petain, herói nacional convertido em ídolo do fascismo interno após a rendição sem luta. Também ali se formam pontos de contado com a formação de uma organização terrorista, constituída por militares e ocupada em promover atentados durante a guerra da Argélia — o próprio De Gaulle, patrono da resistência ao nazismo, chegou a ser alvo. A intervenção nas guerras coloniais levou a formação, no Exército francês, de oficiais especializados na tortura de prisioneiros — práticas que chegaram a transmitir a militares de outros países, inclusive do Brasil, na década de 1960 e 1970.

Villas Boas recebeu as promoções do topo da carreira militar nos governos Lula e Dilma. No governo do primeiro, tornou-se general de Brigada e de Divisão. No da segunda, tornou-se general de Exército e mais tarde Comandante do Exército, o posto mais alto ao qual pode chegar um oficial da ativa. Até há pouco, era visto como uma voz ponderada entre seus pares. Não mais.

Em abril de 2018, dias antes do julgamento do habeas corpus que levou Lula à prisão, ele mandou um recado público ao STF: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”

Na entrevista ao Estadão, neste domingo, Villas Boas avançou um pouco mais. Em vez de perguntas, fez afirmações: “O pior cenário é termos alguém sob júdice, afrontando tanto a Constituição quanto a Lei da Ficha Limpa, tirando a legitimidade, dificultando a estabilidade e a governabilidade do futuro governo e dividindo ainda mais a sociedade brasileira. A Lei da Ficha Limpa se aplica a todos. ”

Avançando em especulações inapropriadas para quem fala em nome de um poder armado, a partir da facada que atingiu Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, o general fez uma observação gravíssima sobre a legitimidade das eleições presidenciais de outubro: “nós estamos agora construindo dificuldade para que o novo governo tenha uma estabilidade, para a sua governabilidade e podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada”.

Villas Boas destacou-se pela omissão quando, em outubro de 2017, uma palestra que o transformou em personagem pública, o general Hamilton Mourão definiu Lula como “sobrevivente do mensalão” e, sem citar seu nome, profetizou: “um dos candidatos que está aí, tenho convicção e fé, vai assistir a vida passar em outro lugar”. Como sabemos hoje, Mourão tornou-se candidato a vice na chapa de Jair Bolsonaro. Na entrevista a Globonews, disse que o general Ustra, condenado como torturador pela Justiça de São Paulo, é um “herói”.

Desde 1988, quando foi elaborada a Constituição em vigor, o país está submetido ao artigo 142, que diz assim: “Destinam-se as Forças Armadas à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Fruto de uma negociação difícil na Constituinte, na qual uma bancada de forças democráticas enfrentava aliados de um governo que usava o apoio da caserna para compensar a falta de base popular, o artigo 142 representou evolução em relação a carta anterior, que não condicionava uma intervenção militar a “inciativa de qualquer” poder constitucional.

É um progresso — e esse avanço, mesmo parcial, não pode ser colocado em questão.

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